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«Ser intérprete de Língua Gestual Portuguesa é ser gesto e voz»

No dia 15 de Novembro assinala-se o Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa (LGP). Para percebermos a sua importância e esclarecermos dúvidas e mitos, convidamos Pedro Freitas, Intérprete de LGP para nos falar sobre o seu percurso profissional e dos principais desafios desta atividade. A acessibilidade à informação continua a ser a maior reivindicação da comunidade surda.

Como e quando se interessou pela interpretação de língua gestual e o que o motivou a seguir essa carreira?
A Língua Gestual Portuguesa (LGP) surgiu na minha vida quando estava a frequentar o 2.º ano do curso de professores de ensino básico, variante EVT, em 2001. Numa ida de autocarro para a Escola Superior de Educação (ESE) de Coimbra cruzei-me com pessoas surdas e fiquei preso na comunicação expressiva (sem entender). Já na escola, reparei num cartaz exposto no átrio que, em breve, daria início a um curso de LGP, porém quando me fui inscrever estavam as vagas preenchidas. Sugeriram que fosse falar com a formadora para tentar saber se havia alguma possibilidade de inscrição, mas apenas consegui assistir às aulas. Com o decorrer da ação a formadora apercebe-se do meu entusiasmo pela língua e sugere a frequência do curso, aberto recentemente, na ESE do Porto em Tradução e Interpretação da LGP. Fiquei com a informação e, após um estágio menos bom, ganhei coragem, desisti do curso e fui ao Porto inscrever-me. Nesse momento já frequentava a Associação de Surdos do Porto e tinha contacto com pessoas surdas. Quando comecei a frequentar o curso de tradução e interpretação percebi que seria através desta profissão que alcançaria a minha realização profissional. E não me enganei.

Quais são as principais competências que considera essenciais para ser um bom intérprete nesta área?
São seis as competências essenciais, segundo Quadros (2004), para um intérprete ser-se competente e são elas que ditam a qualidade da nossa interpretação. A linguística, a capacidade de interpretar as informações de uma língua oral para outra considerando as especificidades linguísticas de ambas as línguas; A competência para a transferência, aquela que nos permite transferir a mensagem de uma língua para outra mantendo o seu significado original; A competência metodológica que nos permite usar diferentes modos de interpretação escolhendo o mais adequado às circunstâncias; A competência na área, ter conhecimento do assunto que vai ser interpretado; A competência bicultural que envolve o conhecimento das culturas subjacentes às linguagens envolvidas no processo interpretativo e, por último, a competência técnica que é a capacidade para nos posicionarmos corretamente de forma a utilizar as tecnologias que sejam necessárias no ato de interpretação.

No dia 15 de novembro assinala-se o Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa. Como está a LGP no panorama nacional?
A Língua Gestual Portuguesa, tal como outras línguas, está em constante evolução e, creio que com a exposição às tecnologias o processo de criação de novas palavras (neologismo) tem potenciado a ampliação do seu vocabulário para que possamos exprimir-nos de acontecimentos recentes.

«A visibilidade da LGP no panorama educativo centra-se, essencialmente, nas escolas de referência para a educação bilingue (EREB) onde estudam os alunos surdos»

Que visibilidade tem, atualmente, esta língua no sistema educativo?
A visibilidade da LGP no panorama educativo centra-se, essencialmente, nas escolas de referência para a educação bilíngue (EREB) onde estudam os alunos surdos. Nas escolas assinalamos as datas comemorativas importantes para a comunidade surda através da realização de atividades que promovem a sensibilização, o encontro entre pares e a divulgação da língua, entre outras. O ensino da LGP para ouvintes já começa a estar disponível em alguns agrupamentos. Que estas conquistas construam uma sociedade mais inclusiva, de futuro.

Quais são as principais dificuldades sentidas, atualmente, pelos intérpretes de Língua Gestual Portuguesa?
Têm sido criadas plataformas online com conteúdos educativos em LGP, no entanto, na área educativa, as dificuldades mais sentidas prendem-se com a falta de gestos nos domínios científico-técnico.

Em termos de materiais bilíngues, vê-se cada vez mais oferta ou ainda há um longo caminho a percorrer neste sentido?
Nas escolas produzimos materiais bilíngues para ficarem acessíveis aos alunos e à comunidade, tendo em conta as necessidades e o perfil dos alunos. A título de exemplo, no âmbito académico registamos a interpretação de histórias ou obras que permitam o acesso facilitado ao currículo quer da LGP quer do português como língua escrita, no entanto, o seu processo de produção é moroso e por vezes, tem a desvantagem de se desatualizar. Relativamente à publicação de livros bilíngues creio que estes se direcionam para a narração de histórias que abordam a temática da surdez. Por outro lado, todos os outros livros infanto-juvenis apenas se direcionam para o público ouvinte, não havendo material em LGP disponível para as crianças surdas. Fica a dica para as editoras.

«A acessibilidade à informação é a maior reivindicação da comunidade surda, tal como a oficialização da sua língua»

A acessibilidade à informação é a maior reivindicação da comunidade surda?
Acho que é o estandarte desta comunidade tal como a oficialização da sua língua.

Como vê o papel do Intérprete de Língua Gestual na comunidade surda e na própria sociedade em geral?
Os intérpretes de LGP são os intermediários entre as comunidades surda e a ouvinte. Ganhamos grande notoriedade no período pandémico, que até à data não tínhamos. O uso das máscaras, que impossibilitava a leitura labial, as chamadas para a SNS 24, a atualização do serviço informativo, as aulas online, entre outros, obrigou-nos a uma readaptação e deu-nos uma preocupação extra para não os deixarmos para trás. As pessoas começaram a associar e a perceber a necessidade da presença do intérprete nos vários contextos de vida o que originou a criação de novos postos de trabalho.

Pode descrever-nos uma experiência significativa em que a sua interpretação teve um impacto positivo na vida de alguém?
Há uma experiência que me marcou na tradução de um caso em tribunal. A pessoa era surda devido a um episódio na infância, onde lhe inseriram um objeto em ambos os ouvidos que lhe provocou inflamação e perda total da audição. Para a protegerem, os pais refugiaram-na em casa privando-a da possibilidade de frequentar a escola durante o seu crescimento, ficando o seu contacto restrito à família ouvinte mais próxima. Este caso chegou a tribunal pois os pais precisavam de apoio, devido à preocupação com a idade e não saber que futuro esperava para o seu filho. No início da diligencia o juiz perguntou à pessoa surda o seu nome, eu faço a questão em LGP e vejo olhos a abrirem-se num brilho e a copiar os meus gestos, as minhas expressões. Apercebi-me que não estava a entender e comuniquei de imediato ao juiz. Foi quando soubemos que nunca tinha frequentado uma escola, apenas sabia gestos caseiros para “beber”, “comer”, “tomar banho”… Naquele momento o papel do intérprete em mim parou. Apelei ao juiz que, juntamente com a Segurança Social, movesse mecanismos para que aquela pessoa tivesse a possibilidade de se expressar através da sua língua. O juiz agradeceu-me pelas indicações prestadas e pela minha ação, não enquanto intérprete mas como ser humano.

Pode compartilhar algum desafio particular mais difícil que enfrentou durante uma interpretação e como o superou?
Um desafio difícil, não por se prender com a dificuldade interpretativa, mas com a dificuldade emocional, foi ter de dar a notícia do falecimento de um familiar, com ligação estreita, a um aluno, num momento em que eu próprio estava a restabelecer-me por alguém que, também, tinha perdido. A superação, se houve alguma, no momento foi o controlo emocional.

Como se mantém atualizado em relação às mudanças na língua gestual?
A melhor forma de nos mantermos atualizados é estarmos em contacto com a comunidade surda, frequentar as ações de formação destinadas aos intérpretes, à língua gestual e também a outras temáticas de desenvolvimento pessoal que para nós sejam relevantes.

«Ser intérprete é muito mais do que conhecer a língua, é defendermos e elevarmos os valores da comunidade surda»

Considera que ser intérprete de LGP é muito mais do que ser alguém que conhece a língua gestual? É como vestir a pele de alguém?
Ser intérprete é muito mais do que conhecer a língua, é defendermos e elevarmos os valores da comunidade surda. Vestimos várias peles, até peles que nos repelem, através das histórias que interpretamos, das pessoas que traduzimos, das vozes melodiosas e agressivas que transpomos e das notícias belas ou bélicas que as nossas mãos têm de dar. A nossa essência não se perde, fica momentaneamente abafada. Às vezes, tal não é possível porque também nos emocionamos.

Que outros projetos do género tem abraçado?
Neste momento, estou envolvido na preparação da interpretação de um espetáculo nas artes e entretenimento.

O que significa para si, ser ouvinte e intérprete de Língua Gestual Portuguesa?
Para mim, ser intérprete de LGP é ser gesto e voz.

Além das habilidades técnicas, quais são as características pessoais que considera importantes num intérprete de língua gestual?
A resiliência de aceitar os desafios e encará-los como aprendizagem e a integridade em mantermos um comportamento vertical connosco e com os outros.

De que forma a interpretação de língua gestual contribui para a inclusão e acessibilidade na sociedade?
A comunidade surda que utiliza a LGP como forma comunicacional sentir-se-á incluída socialmente quando todos os serviços públicos (Hospitais, Tribunais, Polícia, Segurança Social, Finanças, etc.,) tiverem disponível interpretação em LGP, sem recorrerem à contratação através das associações.

Considera que a sociedade ouvinte tem interesse em aprender Língua Gestual Portuguesa?
A sociedade tem imensa curiosidade em saber e em querer aprender, , mas não é suficiente se não houver uma prática constante e um contacto permanente com a comunidade surda e com a língua. Mais do que aprender uma língua é essencial respeitar e compreender o outro.

Como podemos aprender Língua Gestual Portuguesa?
A aprendizagem da Língua Gestual Portuguesa pode ser feita através das associações de surdos que promovem formações de vários níveis ou através de entidades formadoras que lançam sessões de 25h.

Quais são as principais diferenças entre interpretar em contextos formais, como conferências, e em situações mais informais, como conversas quotidianas?
Em contextos informais, do dia a dia, em que o ambiente é mais confortável, pode acontecer estar como intérprete e estar como Pedro. Em contexto formal, como conferência/ seminário temos uma atenção redobrada com o vestuário, o posicionamento, a iluminação, muitas vezes requer um trabalho de equipa e uma preparação atempada dos conteúdos que serão abordados e o conhecimento da linguagem técnica/científica a utilizar.

Há uma preparação diferente nestas situações?
Obrigatoriamente! Se queremos fazer um trabalho de excelência pautado pela qualidade, temos de nos preparar, prever e antecipar soluções para possíveis obstáculos.

Que conselhos daria a alguém que está interessado em seguir uma carreira como intérprete de Língua Gestual Portuguesa?
Que avance! A persistência e a determinação fazem de nós profissionais incríveis! A aceitação da falha também deve estar presente para que possamos crescer e sermos seres conscientes de que há dias que são menos bons.

Como vê o futuro da interpretação em Língua Gestual Portuguesa e quais as tendências que antecipa na área?
A área da interpretação em Portugal está maioritariamente centrada no ensino e na televisão. Acredito, e estou confiante, que o panorama venha a mudar. A comunidade surda está a conquistar novos patamares, a chegar a cargos anteriormente nunca alcançados. Neste momento temos juristas, médicos, assistentes sociais surdos que, com certeza, farão as mudanças acontecerem.

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