Não se pode passar por terras vianenses sem visitar aquele que é um ícone da cidade, o Navio-Hospital Gil Eannes. Construído nos antigos Estaleiros Navais de Viana do Castelo em 1955, este navio teve como missão inicial o apoio à frota bacalhoeira nos mares da Terra Nova e Gronelândia. Embora a sua principal função fosse prestar assistência hospitalar a pescadores e tripulantes, o Gil Eannes foi também navio correio, navio capitania, navio rebocador e quebra-gelo, garantindo abastecimento de mantimentos, redes isco e combustível aos navios da pesca do bacalhau.
Gil Eannes, um navio inicialmente alemão
Durante a Primeira Guerra Mundial, em 1916, o governo português apreendeu todos os navios alemães. No Tejo estava o navio Lahneck, construído em 1914, na Alemanha, e que mais tarde foi rebatizado em terras portuguesas de Gil Eannes. A partir daqui foram criadas todas as condições para o nascimento deste navio multitarefas. Foi em 1927 que o Gil Eannes navegou pela primeira vez para os Bancos da Terra Nova, de forma a cumprir a missão a que fora destinado.
Entre 1935 e 1961, a frota bacalhoeira cresceu exponencialmente, uma vez que o Estado Novo quis fazer do bacalhau um emblema do ressurgimento económico do país. Desta forma, tornou-se essencial melhorar e aumentar a assistência da mesma. Para tal, decidiu-se substituir o velho Gil Eannes e ex Lahneck, que já mostrava cansaço, por um novo navio especialmente desenhado para este fim.
É, então, em 1952, que os Estaleiros Navais de Viana do Castelo ficam encarregues pela construção de um navio destinado ao serviço de assistência durante as campanhas de pesca que se faziam nos mares da Terra Nova e Groenlândia, o novo Gil Eannes.
O guardião dos pescadores
O navio, que fora então idealizado e construído pelas mãos dos técnicos portugueses, a fim de dar resposta a um vasto conjunto de funções – assistência médica, religiosa, afetiva, material, oficinal, navio capitania, navio quebra-gelos e navio pescador- , foi reforçado com o equipamento mais moderno para poder proporcionar um apoio eficaz aos pescadores e à frota pesqueira nacional. Para grande parte dos pescadores, que viviam em condições miseráveis, o Gil Eannes tornou-se um verdadeiro refúgio e o único lugar, no meio do gélido oceano, que sabia a lar.
Assistência Médica: O Gil Eannes estava equipado com um hospital que contava com um bloco operatório, enfermeiras para 74 doentes, dois médicos e uma equipa de enfermagem permanente.
Assistência Religiosa: O Capelão prestava assistência religiosa a todos os navios da frota, com transmissão da missa, pela fonia, aos domingos e dias santos. Aos doentes internados, além da eucaristia, oferecia-lhes o seu convívio, ajudando-os a passar as horasde maior sofrimento.
Assistência Afetiva: O Gil Eannes facilitava a entrega das encomendas que as famílias dos pescadores mandavam, bem como a distribuição do correio. Coordenava e proporcionava ainda, através da sua frota ou da fonia de cada navio, a comunicação dos tripulantes com os seus familiares, estando estes concentrados, à hora estabelecida, num local especialmente adaptado para este fim.
Assistência Material: O navio garantia o transporte e o fornecimento do isco de diversos aprestos e material de pesca, de mantimentos, gasoil, água doce, ferros, amarras e outros, por vezes a trabalhar com condições de tempo bastante adversas.
Assistência Oficinal: Os navios ainda recebiam assistência na reparação de motores elétricos, bobinagem de induzidos, e, várias vezes, na reparação de equipamentos radioelétricos, sondas e radares. De recordar que o equipamento do Gil Eannes era do mais moderno que existia na época, sendo capaz de apoiar a frota e dar assistência a mais de cinco mil pescadores portugueses que iam à Terra Nova e Groenlândia e, para além destes, aos pescadores estrangeiros que eventualmente necessitassem de apoio.
Navio Capitania: O navio funcionava como uma capitania, pois tinha a bordo um Oficial da Marinha de Guerra que resolvia as questões laborais ou outras situasse de conflito que pudessem surgir em qualquer navio da frota portuguesa.
Navio Quebra-gelo: Neste campo, além da assistência prestada a arrastões dentro de campos de gelo, há a destacar principalmente a assistência extraordinariamente difícil e penosa para o Gil Eannes que, muitas vezes, apenas com as suas duas máquinas, conseguia romper a muralha de gelo à sua frente.
Navio Rebocador: Tanto alguns navios de frota à linha, como alguns arrastões beneficiaram do facto do Gil Eannes estar preparado para ser utilizado como navio rebocador, para resolução de alguns dos seus mais graves problemas. As mais de três mil milhas com navios a reboque, representaram, sem dúvida, um grande contributo a favor da economia.
Fundação Gil Eannes: em prol da preservação da memória do povo português
O navio durante toda a sua vida útil realizou 73 viagens. Porém, com o passar do tempo, o Gil Eannes acabou por ficar atracado vários anos nos cais de Lisboa sem qualquer tipo de manutenção e com destino marcado para um sucateiro em Alhos Vedros. Felizmente, a fim de preservar um património material e histórico da vida do país, a 29 de Janeiro de 1998, várias entidades públicas, privadas e individuais vianenses e governamentais, lideradas pelo Dr. Defensor de Moura, Presidente de Viana do Castelo, envolveram-se no resgate do navio e entre a Comissão Pró-Gil Eannes e o sucateiro Baptista & Irmãos SA chegou-se a um acordo favorável. Nesse mesmo dia, o navio foi transportado para o Norte, a reboque, terminando a sua viagem onde nasceu, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.
Bastante degradado, foi com a ajuda de várias empresas e cidadãos, muitos deles com fortes laços familiares ao navio, que se fizeram profundas obras de beneficiação e reabilitação. Findado o trabalho de reabilitação, a bordo do navio, fez-se a escritura da constituição da Fundação Gil Eannes, deixando de existir a Comissão Pró-Gil Eannes que deu lugar a esta fundação, agora proprietário do navio-hospital “Gil Eannes”.
A Fundação Gil Eannes tem como principal objetivo manter este espaço museológico como sendo um lugar de transmissão do conhecimento da história marítima portuguesa em geral, e da pesca do bacalhau em particular, da construção naval vianense e da cultura passada, presente e futura, preservando as memórias de um povo.
O Navio-Hospital como museu
A revista Minha foi visitar o Navio-Hospital Gil Eannes e esteve à conversa com o vogal Paulo Carrança, que nos respondeu a algumas questões:
Atualmente, qual é a funcionalidade do Navio-Hospital Gil Eannes? Atualmente, mais de 95 % do navio já se encontra musealizado e, por iss,o a Fundação está numa fase em que a principal preocupação é a manutenção e não propriamente o restauro. Nesta sua nova vertente, o Navio Gil Eannes caracteriza-se por ser um “museu vivo”, bastante rico em termos de peças históricas, sendo que o navio por si próprio já é um testemunho. Aparte disso, complementa-se com outras ações, como as exposições, que são uma forma de falarmos de determinados assuntos específicos. O vídeo com relato permanente, que temos a passar numa das salas, é outro exemplo de como partilhamos informação de forma criativa com os nossos visitantes. A construção naval e a sua história é um dos temas que tentamos manter sempre reavivado nas exposições. Neste momento estamos também a tentar captar a atenção do público mais jovem, temos aliás um programa com as escolas, obviamente estabelecido antes do confinamento, onde planeamos diversas visitas ao navio. Com o nosso museu procuramos, essencialmente, introduzir e manter a memória de um coletivo. Desde Viana do Castelo, ao Alto Minho e até para além deste território, temos muitas famílias com relações umbilicais à pesca do bacalhau, portanto há um história em termos de comunidade que é necessário preservar. Para além disso, queremos sempre que este navio ajude a concretizar os projetos e as ideias de quem investiga e se interessa por esta área. É igualmente curioso o facto deste navio já ter sido palco de gravações de alguns filmes e séries ou até mesmo de pedidos e festas de casamento. O Gil Eannes é um verdadeiro multiusos e nota-se aqui a grande aproximação e cumplicidade de muitas famílias com este navio
Como se caracteriza a visita ao museu do navio? Antigamente, a visita fazia-se em cerca de meia hora, mas agora tem uma duração de duas horas. Naturalmente conseguimos fazer uma visita mais curta, se assim o desejarem, mas isto mostra o crescimento da vertente museológica do Navio. É importante destacar que temos disponíveis visitas áudio-guias, que nesta fase são fundamentais, uma vez que as visitas guiadas não são permitidas devido à pandemia. O facto de estar quase tudo legendado em português e inglês mostra também a nossa preocupação em sermos um ponto turístico reconhecido não só a nível nacional, mas também internacional.
Como é que se adaptaram à pandemia? Enquanto não se podia receber visitantes aproveitamos para fazer vários trabalhos de restruturação e criar mais condições para receber os nossos visitantes no futuro. Para além disso, fomos tentando manter as exposições, nomeadamente exposições em espaços abertos. Lançou-se também, via Câmara Municipal, um conjunto de coleções, através do “Arquivo de Memória de Viana do Castelo”, com quem protocolamos fazer periodicamente uma exposição temática. Neste momento temos já disponível uma exposição onde, recorrendo às novas tecnologias, se pretende descobrir os locais, que à primeira vista não são possíveis de reconhecer, onde foram tiradas várias fotografias históricas. Esta exposição, pensada de forma a atrair o público mais jovem, foi inaugurada já em fase de confinamento e portanto tivemos as limitações gerais e temos a plena noção de que a próxima iniciativa também não vai ter a inauguração que pretendíamos. Aliás, um dos nossos objetivos, pré-confinamento, era criar pelo menos dois dias por mês em que a população de Viana pudesse entrar gratuitamente no navio, não só para visitar as exposições, mas para ver o navio em si. Seria uma forma de trazer as pessoas a bordo, uma vez que muitas das pessoas que passam por aqui e vivem em Viana, só conhecem o exterior e queremos combater isso. É curioso que, por outro lado, quem vem de longe para visitar Viana normalmente tem como ponto de passagem obrigatória o Navio Gil Eannes, o que é bastante positivo e por isso tentamos sempre alargar os nossos horários durante o verão.
Têm projetos para um futuro próximo? O objetivo principal agora é essencialmente retomar a atividade. Em 2019 tínhamos cerca de 83 mil visitantes, foi um dos nossos melhores anos, 2020 para as estimativas que tínhamos também correu bem e a atual retomada de atividade também está a correr bastante bem, embora haja um problema grande, que é o facto de não termos turistas estrangeiros. A expectativa que temos neste momento é então recuperar pelo menos o mercado nacional e lançar uma campanha junto do mercado espanhol e uma campanha para reanimar o mercado no campo escolar, queremos, quando for possível, que as escolas voltem aos navios, até porque agora temos e pretendemos uma visitação muito mais alargada e até outras formas de comunicar, como através do online. Neste sentido estamos presentes em algumas feiras promocionais em Espanha e estamos inseridos em vários projetos e campanhas de forma a dar visibilidade ao navio. Inclusive recebemos um selo de excelência há pouco tempo, uma iniciativa não só da Câmara Municipal, mas também da entidade Turismo do Porto e Norte, do IPVC. Este reconhecimento é algo que nos permite criar uma estratégia de promoção e comunicação de forma a chegarmos a públicos mais vastos para além de Espanha. De forma geral, estes são alguns dos nossos objetivos para o futuro, mas sempre com os pés assentes na terra em relação à situação atual. Mas acredito estarmos num caminho amplo de sucesso e agora queremos retomar esse caminho. Todas as entidades que fazem parte da Fundação fazem questão de dar visibilidade e os apoios necessários ao navio, que é um verdadeiro património coletivo e isso é fundamental para continuarmos esta jornada, procurando sempre melhorar.