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O que te faz feliz? Wind Family: uma família ao sabor do vento

Acompanhe todos os preparativos e a viagem da Wind Family aqui!

 

Quando Inês conheceu João, não lhe achou grande piada. Não houve química imediata, nem borboletas no estômago. O “clique”, chamemos-lhe assim, não tardou, no entanto a chegar. João disse que gostaria muito de viajar pelo mundo e de ter uma família grande: Inês percebeu-lhe nas palavras a sintonia que haveria entre os dois e, desde então, não mais se largaram. Depois do casamento, chegaram os filhos: Alice, com dez anos, é a mais responsável e dócil das crianças. Manuel tem oito anos e Inês diz que é o mais profundo dos quatro, o mais calado, aquele que surpreende com palavras que obrigam os pais a consultar o dicionário. Já Francisco, de cinco anos, é o artista da casa: canta, dança, faz da vida uma festa. Teresinha, de dois anos, a benjamim da família, é também a mais desenrascada, a que recusa ajudas, a mais destemida. A mãe ainda acrescenta que são todos “lindos de morrer”, mas não esconde as dificuldades que podem existir entre personalidades tão distintas quando convivem vinte e quatro horas por dia. Fizeram já uma experiência com o veleiro, em que permaneceram dois meses na costa algarvia e o início não foi fácil.

“O começo? Horrível! Para começar, enjoaram todos. Imagina o que são cinco nauseados, até o pai. Eu não enjoei, mas confesso que houve coisas em que levei um choque… Então agora eu tinha de começar a lavar roupa à mão? E a loiça também? Eu estava tão bem na minha vidinha, até tinha ajuda em casa… Já eles, duas semanas depois, pareciam ter vivido sempre num barco. Fiquei atónita!”, explica Inês.

Seguindo o exemplo das crianças, a mãe recusou-se a baixar os braços e adaptou-se. Percebeu que tinha em mãos um problema de gestão de expectativas e que “os sonhos não deixam de ser sonhos só por não serem perfeitos”. Começou a relevar alguns aspetos e a valorizar outros: em breve também ela parecia ter nascido no barco. A ideia de viajarem pelo mundo desta forma ganhou cada vez mais força. Os planos são simples: já há algumas rotas traçadas, mas estão abertos a novas aventuras também.

“Vamos até um país e vamos explorar o local. Se gostamos muito, estamos lá um mês, mês e meio ou mais. Se não for assim tão giro, uma semana chega. Como não vamos com datas estipuladas, estamos completamente livres nesse aspeto. A ideia é chegar a um sítio, ver se gostamos das pessoas, do ambiente da comunidade, se as crianças fazem amigos. Se gostamos, vamos ficando. Se não gostamos, vamos embora mais cedo. E à noite dormimos no barco, é como se fosse uma autocaravana”, afirma a mãe.

“A viagem vai durar enquanto nós quisermos. Claro que olho para a minha filha mais velha e antevejo que a viagem não poderá durar mais de quatro ou cinco anos. Quero que ela tenha uma adolescência normal, não a vamos privar disso. Claro que não vamos desistir ao primeiro queixume, mas se virmos que ela, ou qualquer um dos outros, não está bem, regressamos.”

Esta “autocaravana” tem a particularidade de ser enorme: há um quarto para os pais, um para os rapazes e outro para as meninas, uma boa cozinha e uma grande sala. No total, são quinze metros de veleiro que vão albergar e transportar esta família.

“Nós não estamos sempre enfiados no barco, é um meio de transporte e um sítio para dormir, nada mais. Se gostarmos muito de um local e ficarmos algum tempo, penso inscrever os miúdos numa escola para que eles aprendam espanhol, inglês, francês… Eles ficam todos contentes, fazem amigos e ainda aprendem outra língua. É uma experiência muito gira. A nossa vida não vai ser só no mar”, explica.

Dentro das rotas traçadas, há duas grandes travessias: a do Atlântico, que envolve cerca de quinze dias no veleiro, e a do Pacífico, rumo à Polinésia Francesa, sendo expectável uma viagem de trinta a quarenta dias. E o que se faz dentro de um barco durante todo esse tempo?

“Ouve-se música, cozinha-se, estabelecem-se laços muito diferentes com os filhos, aprende-se a tocar um instrumento, pesca-se muito!… As pessoas que fazem este tipo de travessias com filhos levam sempre muita coisa para fazer, levam jogos, fazem trinta por uma linha para se distraírem. Missangas, artesanato… estás a ver aquelas coisas que adoras, mas nunca tens tempo para fazer? Ali tens tempo para tudo! Eu adoro escrever, adoro ler, por isso planeio fazer muito as duas coisas. E também vamos ver filmes e jogar consola, temos acesso a tudo!”, diz Inês, visivelmente entusiasmada.

© Wind Family

A Wind Family terá acesso à internet, por isso também estará quase sempre contactável. Até porque os avós das crianças já disseram que não aguentam as saudades, planeando juntar-se à família num dos países que visitarem. Enquanto isso não acontece, as novas tecnologias vão dando uma ajuda, mitigando as saudades. Inês também deixa em terra dois irmãos mais novos, “em idade para casarem e terem filhos”, e não planeia perder esses momentos. Esse é, aliás, um dos motivos que pode ajudar a encurtar a viagem da família.

“A viagem vai durar enquanto nós quisermos. Claro que olho para a minha filha mais velha e antevejo que a viagem não poderá durar mais de quatro ou cinco anos. Quero que ela tenha uma adolescência normal, não a vamos privar disso. Claro que não vamos desistir ao primeiro queixume, mas se virmos que ela, ou qualquer um dos outros, não está bem, regressamos. E também penso nos meus irmãos: quero estar presente no dia do casamento deles e quero acompanhar os meus futuros sobrinhos assim como eles acompanharam os meus filhos”, afirma.

Uma família unida, com certeza

Para conseguirem levar este projeto familiar adiante, houve muita coisa que João e Inês tiveram de fazer antecipadamente. Tiveram que juntar dinheiro anos a fio – até para conseguirem comprar o veleiro –, largaram depois os empregos – Inês era organizadora de eventos e João é professor de fotografia – e agora vão alugar as casas que possuem, o que lhes dará algum retorno financeiro ao fim do mês. Questionada sobre o futuro, depois do regresso a terra, Inês responde sem hesitar que não tem medo.

“Não tenho receio nenhum, de todo. Tenho medo de muita coisa, do futuro nunca. Isso é uma coisa que não me mete medo. Em termos de trabalho, então, zero medo. Nunca tive. Que não pareça arrogância, mas seja aqui ou na China, safo-me sempre. Não tenho medo do trabalho, faço o que for preciso. Sei que tenho muita coisa boa a meu favor e que me deixa ter trabalho em qualquer lado. Tenho sempre receio que as pessoas interpretem isto como arrogância, mas sou empreendedora, adoro pensar em coisas novas, montar projetos novos”, explica.

Foi, aliás, este lado muito pragmático de Inês que casou na perfeição com o lado sonhador de João. Aquilo que este pai tem de sonho e imaginação, a mãe materializa com persistência e pragmatismo. E são estas diferenças que “encaixam”, que permitem ser possível este sonho.

© Wind Family

“Não me metia nisto com mais ninguém. Tens que ter mesmo a certeza que tens um parceiro à altura, senão é discussão de manhã à noite, não te aguentas. Porque uma coisa é cada um trabalhar e estarem juntos ao final do dia, noite, férias… Aqui estás vinte e quatro sobre vinte e quatro horas com a mesma pessoa, não é brincadeira. Nós encaixamos mesmo muito bem”, afirma, com convicção.

A juntar aos muitos afazeres que terão pela frente, estes pais somam mais um: durante vários anos serão os professores dos filhos, que a partir do próximo ano ingressam no regime de ensino doméstico, mais uma coisa que não tira o sono a Inês.

“Não me metia nisto com mais ninguém. Tens que ter mesmo a certeza que tens um parceiro à altura, senão é discussão de manhã à noite, não te aguentas. Porque uma coisa é cada um trabalhar e estarem juntos ao final do dia, noite, férias… Aqui estás vinte e quatro sobre vinte e quatro horas com a mesma pessoa, não é brincadeira. Nós encaixamos mesmo muito bem.”

“Não é nenhum bicho de sete cabeças. Pensei que era uma coisa muito difícil, mas não. É só preencher o impresso e comprovar que temos capacidade para sermos tutores deles, temos que ser licenciados e tudo o mais. E temos que explicar as nossas motivações! Nós não queremos fugir aos programas, mas ensiná-los de outra forma. Para além disso, vamos levar os livros e vamos estar em contacto com o agrupamento, que é impecável e tem confiança em nós. Somos os mais interessados em ter miúdos inteligentes. Quando chegarem provavelmente terão que fazer um exame para entrarem no ensino correspondente”, adianta.

Em vez de estudarem os animais, geografia ou a história de um local através de um manual, estas crianças irão fazê-lo in loco, com a ajuda dos pais. Mesmo o facto de estarem todos em anos escolares diferentes não atrapalha Inês e João, até porque os dois filhos mais velhos já são bastante autónomos. Será apenas preciso um cuidado maior com Francisco, que ingressa no primeiro ano em setembro de 2021, mas também aqui Inês é muito prática: se em alguns dias não conseguirem estar “de volta dos livros”, compensam noutros. A alegria e o entusiasmo que todos demonstram com a partida dá força a Inês para acreditar que tudo irá correr bem.

“Estão super entusiasmados. Já há uns anos que vamos dizendo que vamos fazer isto, por isso alguns deles pensam mesmo que nasceram com este sonho. Já tínhamos a certeza que íamos ainda eu não tinha engravidado da Teresa, ela nasceu a saber que íamos dar a volta ao mundo. O Francisco, com cinco anos, ouve isto desde que nasceu. Neles os dois está completamente enraizado, acham que são piratas, acham aquilo o máximo! A mais velha foi a única que estranhou um pouco: «então mas não vou para o quinto ano? E os meus amigos? Depois quero voltar no oitavo!» Está preocupada com isso, mas também está super entusiasmada. Já lhe disse que vai ter outros amigos, vai ter o primeiro namorado na Polinésia, de certeza”, brinca.

E a ti, o que te faz feliz?

A família parte para viajar, para aprender, ensinar, mas também para ajudar. É essa a paixão de Inês, assistente social de formação, e o que mais a incentiva nesta aventura. A mãe confessa mesmo que, se não fosse essa vertente, facilmente se fartaria das “águas azul turquesa”. Precisa de mais, muito mais, e foi com essa sofreguidão de ajudar os outros que nasceu o projeto “Letters of Love”.

“Chegamos com os miúdos a uma escola de um dos países que vamos visitar, montamos uma caixa de correio com materiais que haja lá e explicamos que há meninos que estão no hospital a passar um momento difícil: se fizéssemos um desenho ou uma carta para eles, de certeza que ficariam contentes. Aquela tarde seria diferente porque haveria uma surpresa para eles! A ideia é depois as professoras e educadoras entregarem as cartas no hospital ou centro de saúde mais próximo uma vez por mês. Não vai mudar o mundo, mas acho bonito ensinar aos meus filhos que podemos sempre fazer alguma coisa que, mesmo que simples, pode mudar a tarde de alguém para melhor. E isso já é alguma coisa!”, explica Inês.

Estas preocupações sociais são mesmo o que esta mãe mais quer transmitir aos filhos, que “o melhor presente que podem dar a outras pessoas é o tempo deles”. Para as crianças que os recebem na escola e participam do projeto também será certamente interessante conhecer uma “família de seis que anda pelo mundo a espalhar amor”. 

“Quero tentar perceber o que em todo o mundo, em tantos sítios completamente diferentes, faz as pessoas felizes, até porque acho que andamos todos enganados no que diz respeito à felicidade.”

Há uns meses, Inês viajou pela primeira vez sozinha. Incentivada pelo marido, foi até à Guiné-Bissau, onde fez a primeira experiência com o “Letters of Love”. A experiência abriu caminho para outros projetos que ainda não têm nome: isto porque, no terreno, a mãe da Wind Family deparou-se com uma realidade inesperada.

“Levei o projeto a cabo em várias escolas e hospitais, mas também iniciei um novo relacionado com lixo. Havia imenso lixo lá!… Se bebes de uma lata, se comes qualquer coisa, o normal lá é deitares o lixo que sobra para o chão, até para o chão de casa. Os miúdos nunca tinham ouvido dizer que o lixo não é para ir para o chão! E foi disso que falei com eles, expliquei-lhes que não o podiam fazer, até porque podiam ficar doentes… Com essa espécie de formação percebi que é um pouco isto que vou fazer, vou chegar a um sítio e tentar perceber qual é o grande problema local, porque posso ter muita coisa para partilhar nesse sentido. É que em alguns sítios não há sequer um lápis para poderem escrever uma carta. É um estalo de realidade, ficas sem chão: não há U-M lápis”, diz, tristemente.

© Wind Family

O facto de saber que não conseguirá executar o “Letters of Love” em todos os locais não desanima Inês. Ciente das dificuldades que alguns países atravessam de forma permanente, deixa em aberto outros projetos. Além das formações sobre resíduos, Inês tem outro desejo que envolve a colaboração dos habitantes locais. Em cada aldeia, vila, ou país por onde passar, Inês fará e registará a mesma pergunta: “O que é que te faz feliz?”.

“Quero tentar perceber o que em todo o mundo, em tantos sítios completamente diferentes, faz as pessoas felizes, até porque acho que andamos todos enganados no que diz respeito à felicidade. Aqui na Europa temos muitas coisas, muitos carros, muitas lojas, muitos serviços, mas, se calhar, o que nos faz felizes a todos é a mesma coisa: as pessoas, a família. Se calhar não é o dinheiro!… Vão ser tantas pessoas, tão diferentes, e quase que aposto que as respostas vão ser iguais…”, explica.

A viagem da Wind Family será documentada através do Instagram (@wind.family) e é lá também que Inês registará algumas destas respostas em vídeo. Para inaugurar este último projeto de amor, não resistimos a fazer da criadora cobaia e retribuímos a pergunta que irá fazer repetidamente ao longo dos próximos anos.

“O que me faz feliz? São as pessoas, é a minha família… É este momento que partilho contigo da minha vida, mesmo sem te conhecer. São as pessoas que me fazem feliz. É isto que faz sentido. É eu ir e sentir que a Flávia, que iniciou esta conversa comigo a tratar-me por «você», agora faz parte de mim. Sei que não me vais largar e sei que já não te vou largar”, afirma, comovida.

 

 

 

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