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Em busca da lampreia nas pesqueiras do rio Minho

Nas águas sinuosas e cristalinas do rio Minho, onde Portugal e Espanha se encontram, uma tradição ancestral ecoa: a pesca da lampreia. Com a sua aparência primitiva e sabor exótico, este ciclóstomo autóctone atrai pescadores e apreciadores em todo o país, ávidos por pescar e saborear uma das iguarias mais sui generis da culinária minhota.

Estamos em Melgaço. E é na alvorada de uma manhã fresca, que as águas começam a ganhar vida. À medida que o sol nasce timidamente sobre a linha do horizonte, as pesqueiras do Rio Minho mantêm-se firmes para receber os hábeis e experientes pescadores. Venâncio Fernandes, de 67 anos, é quem nos guia nesta secular e artesanal arte da pesca da lampreia. Aprendeu a pescar com o pai e, desde os 7 anos, que o rio Minho e as ancestrais pesqueiras fazem parte da sua vida. 

Depois de se colocar estrategicamente sobre a pesqueira 121, uma estrutura alta em pedra, situada sobre o límpido curso de água, Venâncio ajusta as redes com habilidade precisa, através de uma técnica sublime ao alcance de poucos, e que foi transmitida ao longo dos anos, de geração em geração. Connosco, partilha a sua paixão pela pesca da lampreia, uma tradição profundamente enraizada na cultura e na identidade da região do Minho.

«É um ritual que perdura há séculos», diz-nos, enquanto os seus olhos experientes atentam as águas vivas em busca de sinais do animal que, por esta altura, faz as delícias de locais e visitantes. «A lampreia é uma iguaria única, apreciada por muitos, mas capturá-la requer paciência, habilidade na colocação das redes e respeito pelo rio. As próprias pesqueiras estão habilmente posicionadas para atrair a lampreia. É uma atividade um pouco dura, principalmente quando chove e está frio. Mas tudo é ultrapassado quando há gosto pelo que se faz», revela-nos.

A veneração pelo rio Minho                                 

Ao rio Minho estão ligadas as principais atividades que foram, durante anos, as fontes de sobrevivência das comunidades locais e a pesca, desde cedo, assumiu-se como uma das suas principais fontes de rendimento. Nesses tempos, o rio era rico em espécies que ainda hoje fazem as delícias gastronómicas, com destaque para o salmão, sável, savelha e, sobretudo, lampreia, espécies utilizadas como produtos de promoção turística de Melgaço e da região e que hoje constituem verdadeiras “peregrinações” gastronómicas.

Venâncio Fernandes, que é também presidente da Pesqueiras – Associação Dos Pescadores Do Rio Minho, compartilha histórias fascinantes sobre a relação íntima entre os pescadores locais e o rio que durante muitos anos os sustentou. Descreve-nos como a temporada da lampreia marca o início de um ritual antigo que se pretende perpetuar no tempo. E as idas regulares, quase diárias, ao rio Minho são sinónimas de bem-estar pessoal. Um hábito de décadas que não consegue contrariar. «O rio Minho faz parte de mim. Considero-o um amigo e faz parte da minha família. Gosto muito de o vir visitar, nem que seja olhar para ele, ouvir a água a correr e sentir os cheiros. Um dia quero despedir-me dele, agradecendo-lhe por tudo o que me deu e por todos os momentos que me proporcionou», revela-nos, com a sua voz tingida de veneração. «Não consigo viver sem fazer isto e acredito que no dia em que falecer, o rio Minho chorará por mim», considera, visivelmente emocionado.

Enquanto a manhã fresca vai alvorecendo, a atmosfera junto ao rio é carregada de expectativa. Venâncio monitora atentamente as redes e cada movimento surge como uma dança coreografada de experiência e intuição. Com uma destreza impressionante, Venâncio retira habilidosamente a rede da água, mostrando um respeito cerimonioso pela arte de pescar a lampreia, petisco que proporcionará deleite a muitos paladares. Enquanto observamos maravilhados, partilha os segredos da limpeza e preparação da espécie, uma arte em si mesma que exige habilidade e conhecimento. «Muitas pessoas não gostam devido à aparência estranha do animal, mas a verdade é que se não for bem limpa, também terá um gosto estranho. Por isso é que deve ser bem preparada e nem toda a gente o sabe fazer convenientemente. Mas se for aberta, limpa e confeccionada devidamente, é uma delícia. Este é o grande segredo», revela-nos.

À medida que a manhã avança para o fim, retomamos às margens do rio, refletindo sobre a experiência única de testemunhar esta tradição no rio Minho. Para Venâncio Fernandes, esta é mais do que uma atividade de subsistência e sobrevivência, para consumo das gentes da terra. É uma conexão profunda com as águas que moldaram as vidas dos pescadores locais e a sua cultura ao longo dos anos. E para aqueles que têm o privilégio de compartilhar desta experiência, é uma memória inesquecível da beleza e da vitalidade do rio Minho que flui através das suas histórias, num ritual que transcende o tempo e que difunde as potencialidades naturais e culturais dos concelhos do Vale do Minho. E apesar de não ser consensual ao gosto de cada paladar, a lampreia é um recurso endógeno de valor inestimável do receituário gastronómico minhoto, que nos lembra da importância de honrar e preservar os tesouros da nossa herança cultural.

E as pesqueiras do Rio Minho constituem um bom exemplo da relação estabelecida entre o meio físico e o social, um marco histórico-cultural que prova bem os usos e costumes de um povo, nomeadamente na arte de armar a pesca. Há, de facto, uma aproximação clara entre o homem e o meio natural, um equilíbrio estável, característico de uma paisagem de rara beleza, que se diversifica ao longo do curso do rio.

Autênticas fortalezas

Segundo Isabel Domingues, do projeto Raízes, que nos auxiliou nesta visita e que tem acompanhado a comunidade de pescadores e feito um trabalho de base para manter viva toda esta dinâmica associada ao rio Minho, tendo como missão «salvaguardar um património coletivo, imaterial, em risco de sobrevivência, partindo do individual para construir o colectivo», as pesqueiras são «habilidosos sistemas de muros construídos a partir das margens, que se assumem como barreiras à passagem do peixe, que se via, assim, obrigado a fugir pelas pequenas aberturas através das quais, coagido pela força da corrente das águas, acabando por ser apanhado em engenhosas armadilhas». Desde a foz, em Caminha, até Melgaço, o peixe vence mais de 60 quilómetros, numa viagem de luta contra a corrente que termina, para alguns exemplares, em “autênticas fortalezas” construídas a partir das margens, “armadas” com o botirão e a cabaceira, as “artes” permitidas para a captura das diferentes espécies.

160 pesqueiras ativas em Portugal

O rio Minho, fronteira natural entre Portugal e Espanha, concentra nas duas margens, só no troço de 37 quilómetros (entre Monção e Melgaço) cerca de 900 pesqueiras. Destas, em Portugal estão ativas 160 e, do lado espanhol, aproximadamente 90. E as artes de pesca são, no seu conjunto, idênticas nos dois lados do rio. Os pescadores portugueses e espanhóis mantêm uma relação de proximidade que vai para lá das relações pesqueiras (embora a pesca potencie ainda mais esses vínculos).

E se a lampreia que sobe ao rio Minho é cada vez menos abundante, o número de pescadores também acompanha essa escassez. Venâncio Fernandes tem a explicação. «Nos últimos dois anos, tem havido menos lampreia e se há um jovem que vem para cá e não apanha lampreia, desanima e desiste poucos dias depois. Com os mais velhos isso não acontece porque já são muitos anos nisto e não conseguimos deixar esta vida. Este ano, a escassez vai continuar até porque existe uma nova ameaça, que é um peixe-gato que está a afetar a lampreia em França e já se encontra no Tejo e no Douro», explica-nos.

Pesqueiras integram Inventário Nacional do Património Imaterial

As pesqueiras do rio Minho estão devidamente numeradas e regulamentadas pela Capitania de Caminha e integram, desde novembro de 2022, o Inventário Nacional do Património Imaterial. Velhas de séculos ou mesmo quase milenares (as primeiras referências documentadas são do século XI) as pesqueiras podem ter sido feitas pelos povos castrejos que habitavam as margens do rio Minho e que já trabalhavam a pedra e o ferro. O que se sabe é que eram utilizadas pelos romanos da mesma forma como continuam a ser utilizadas hoje.

Restaurantes do Vale do Minho promovem lampreia até 15 de Abril

Até 15 de abril, quase uma centena de restaurantes de Caminha, Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira disponibilizam nas suas cartas gastronómicas a “rainha” do rio Minho. Lampreia à bordalesa, assada no forno, ensopada no molho do seu próprio sangue e com arroz, recheada, escabeche e ainda sushi, são algumas das variadas propostas que podem ser degustadas ao longo da 5.ª edição da “Lampreia do Rio Minho: Um Prato de Excelência”, evento anual dinamizado pela ADRIMINHO – Associação de Desenvolvimento Rural Integrado do Vale do Minho, em parceria com a Confraria da Lampreia do Rio Minho e com os seis municípios do Vale do Minho, numa autêntica festa gastronómica que tem como principal objectivo «a promoção de um produto/prato tradicional, portador de uma forte componente turística para este território».

 

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