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«O Festival Internacional de Órgão de Braga tem sido o veículo para partir à redescoberta do Património, de um tesouro que estava esquecido e que é de todos»

O Festival Internacional de Órgão de Braga assinala 10 anos de existência e, em entrevista à Revista Minha, o diretor artístico, José Rodrigues destaca a importância deste evento que já é uma marca de grande relevância na agenda cultural da cidade e projeta a edição deste ano que decorre de 12 a 28 de abril, com 12 concertos dedicados à música coral.

 

Resumidamente, quem é o José Rodrigues a nível pessoal, e como descreve o seu percurso profissional?

O José Rodrigues é geógrafo, na especialidade em desenvolvimento regional/turismo em espaço rural, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, também formado em Património Cultural e Religioso, pela Universidade Católica, com a tese na área da organologia sob o título “O órgão ibérico em Braga”. É também professor e um apaixonado pelo contacto com a natureza. A ligação à música e, em particular, ao “rei dos instrumentos” nasce na Catedral de Braga onde por convite do então Deão, Cónego Melo, com 11 anos, passa a organista e se apaixona pelo mundo deslumbrante deste instrumento. A proximidade com os grandes órgãos da Catedral despertou a curiosidade e interesse, não só pela parte musical, mas pela mecânica, pelas características de funcionamento e mesmo pela história milenar do órgão de tubos. Estudou música na Escola Arquidiocesana de Música Sacra de Braga, com o Padre Azevedo de Oliveira, e depois Música Sacra com Eugénio Amorim (direção coral), Paulo Antunes (Liturgia), Alberto Medina de Seiça (direção coral e gregoriano). Nos últimos anos colabora com a Arquidiocese de Braga, mas também com outras dioceses, instituições e empresas na inventariação e estudo dos órgãos históricos, acompanhando processos de conservação, restauro e de construção de novos órgãos. Em 2023 lança o livro “O órgão ibérico em Braga – um excecional património” que serve de introdução aos próximos volumes que irão dar a conhecer a totalidade dos órgãos da Arquidiocese.

 

Como surgiu a ideia de criar o Festival Internacional de Órgão de Braga e o que motivou a concretizar este evento?

A ideia já estava no pensamento e já se falava na necessidade de um evento de dinamização do Património organológico e musical da cidade há vários anos, com o Cónego Melo, o Doutor João Duque e o Padre Mendes de Carvalho. Há dez anos foi possível reunir com este propósito as quatro instituições de maior responsabilidade cultural da cidade: Arquidiocese, Município, Santa Casa da Misericórdia de Braga e Irmandade de Santa Cruz, pelas quais fui convidado à direção artística deste evento. Não se pode falar de um momento ou de uma pessoa, o Festival é importante também pela forma como surge da comunhão de vontades de várias instituições e da própria sociedade e desse reconhecer alargado do tesouro que temos em mãos, e que esteve por muitos anos “fechado”, que nasce o Festival Internacional de Órgão de Braga. A direção artística apenas lhe deu esta forma peculiar de apresentação e que tem merecido as melhores críticas e, acima de tudo, tem atraído verdadeiras multidões aos concertos todos os anos. A visita a outras cidades europeias e a festivais de música trouxeram a questão de porque é que cidades com dois ou três órgãos tinham grandes festivais e Braga com 47 não se fazia nada? Daí, foi partir para a ação.

Em 2024, assinalam-se 10 anos de existência do festival. Quais foram os momentos mais marcantes e significativos e como vê a evolução do evento até aos dias de hoje?

Este Festival, nestes 10 anos, não deixa de surpreender pelo fenómeno de atratividade de público. Falar de momentos marcantes começa desde logo pelo primeiro dia de Festival, em 2014, quando se abrem as portas da Catedral e estão cerca de 1000 pessoas para entrar e assistir ao concerto a dois órgão, o que já não ocorria há cerca de uma década e mesmo os habituais concertos nunca alcançavam um número tão significativo de público. E, há 10 anos que é assim, em todas as igrejas e concertos, com natural dificuldade para as igrejas mais pequenas, pela sua menor capacidade de acolher um maior número de público, mas que mesmo assim não dispensamos de visitar para dar a conhecer os órgãos que possuem, pois, a riqueza de Braga está nessa diversidade de instrumentos históricos, 47, tão distintos e ao mesmo tempo fascinantes. Claro que nas várias edições e com programas tão variados e originais torna-se difícil selecionar momentos particulares, contudo, há concertos que nos ficam na memória, como o que juntou o órgão à guitarra portuguesa e ao Fado, o que dialogou com o Cante Alentejano, o que colocou em destaque o pequeno órgão do museu da Catedral, em que foi necessário ter um “foleiro” para que o instrumento tocasse, como originalmente, ou os ritmos argentinos com órgão e saxofone…penso que temos conseguido provar que estes instrumentos com 300 anos são de uma grande versatilidade e que as suas potencialidades abarcam vários géneros musicais, estilos e épocas. Também de particular importância os concertos em que se ouviu pela primeira vez em anos o som de órgãos restaurados, como o de São Vítor, Terceiros ou Pópulo. É devolver ao instrumento musical o seu sentido, o de produzir música, porque os órgãos não são “bibelôs” de decoração e a maioria destes órgãos estava em silêncio há mais de 50 anos. Quando olho para um instrumento avariado, como ainda existem muitos, penso em como será a sua “voz”, pois não existem dois órgãos iguais, todos têm uma identidade sonora ímpar.

 

«Oferecer “música fácil” é desrespeitar o público, porque é a exigência que nos permite alargar o nosso conhecimento. Tenho notado que as pessoas reconhecem essa consideração»

 

Com uma programação tão diversa e eclética, que abrange polifonia antiga até composições contemporâneas, como é efetuado este equilíbrio entre a diversidade de estilos e períodos musicais para oferecer uma experiência enriquecedora ao público?

Ao fim e ao cabo as possibilidades são as que os instrumentos oferecem, não se veio inventar nada, o Festival potencia as características de cada órgão. Claro que isso é possível com músicos profissionais e com uma criteriosa seleção dos programas a executar. E se este aspeto poderá ser um dos segredos do sucesso do evento é, ao mesmo tempo dos maiores desafios, pois há 10 anos que se tenta desconstruir uma ideia que se foi enraizando nas pessoas de que o órgão e a sua música são aborrecidos fruto do amadorismo que se instalou durante anos. Há que o dizer com frontalidade que a falta de critério e exigência com quem toca nas igrejas, o desinvestimento na formação de organistas e a procura do “gratuito”, se não o mais relevante, foi um dos aspeto que levou à ruína de muitos dos órgãos que permanecem mudos e em processo de degradação, pois abriu caminho, primeiro aos harmónios e depois às “imitações eletrónicas”, que são escolhidos pelos “animadores de missas”, alguns com muita boa vontade, e que vão preenchendo os silêncios nas celebrações com modas que em nada respeitam a música secular, também ela património. Tudo isto reflete um empobrecimento nas celebrações que depois, por contágio, se reflete no ambiente cultural. Com instrumentos de qualidade como os que existem nas várias igrejas de Braga é de lamentar que as celebrações e a vida cultural tenham perdido a solenidade e a qualidade que granjeou durante séculos. No Festival, e no contexto cultural e artístico, procura-se contrariar essa tendência e promover uma oferta de qualidade, que seja original e com isso o público reconheça que os concertos são momentos imperdíveis. Oferecer “música fácil” é desrespeitar o público, porque é a exigência que nos permite alargar o nosso conhecimento e tenho notado que as pessoas reconhecem essa consideração. A experiência é, sem dúvida, única em todos os concertos. Apenas lamento que, sendo um evento que atingiu um lugar especial na agenda cultural da cidade e da região, que possui inclusive o Alto Patrocínio do Presidente da República, e o reconhecimento internacional, continue a ser ignorado por algumas entidades que nestes anos se manifestaram sempre indisponíveis sequer para assistir aos concertos e muito menos para os apoiar, como é o caso da Direção-Geral das Artes e mesmo entidades locais que, pela proximidade, deveriam estar na linha da frente do apoio. Cabe o devido reconhecimento às entidades organizadoras e às empresas que, com o seu patrocínio, são os verdadeiros mentores e responsáveis pela existência do Festival nestes 10 anos.

 

A edição deste ano apresenta dois concertos onde se vai ouvir o Cante Alentejano. Porque decidiram introduzir ao festival esta expressão musical tão genuína e única no mundo?

O Cante é genuíno e singular, assim como o são os órgãos históricos de Braga. Há uns anos tinha-se já feito esta experiência, na edição dedicada à voz, e o sucesso foi tal que ficou a promessa de o repetir, embora com outro programa. Esse momento chegou agora com o tema deste ano – “O órgão e o canto coral” e, desta vez na Catedral (dia 12 de abril) e no Santuário do Bom Jesus, ao ar livre, para um programa mais popular mas sempre com a companhia do Cante. Fomos pioneiros ao promover este diálogo entre os “velhos” órgãos de tubos e o Cante, ambos património de incalculável valor, porque são únicos. Mas as semelhanças entre o “cantar” e o órgão são muitas, e por isso o órgão é o instrumento mais indicado para acompanhar as vozes. Por ser um aerofone a produção do ar é feita por foles, que acabam por desempenhar a função de “pulmões”, dos quais o ar é canalizado depois até aos tubos. Na voz humana e no Cante também é o ar que leva ao som, quando passa e faz vibrar as cordas vocais. E não deixa de ser curiosa a terminologia histórica relacionada com os tubos dos órgãos ao chamar à parte frontal do tubo, por onde “sai” o som, boca, e à parte interior, que apesar de invisível é essencial para que exista som e alma. O Cante é um género coral sem acompanhamento de instrumentos, quando muito a guitarra campaniça ou outro típico do Alentejo em algumas modas. Para este ano convidamos o Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento (Serpa) que virão propositadamente a Braga para nos brindar com este modo peculiar de cantar, que é Património da Humanidade pela UNESCO. O órgão será chamado à improvisação sobre as modas alentejanas e por isso convidamos um dos mais conceituados organistas mundiais, Daniel Roth, organista emérito de Saint Sulpice, em Paris, conhecido pela arte da improvisação, tendo sido mestre dos mais prestigiados organistas da atualidade.

 

O cruzamento do órgão com os mais diversos instrumentos é também um atributo que o festival promove. Que mais-valias introduzem?

Na etimologia a palavra “órgão” significa “o instrumento” que congrega em si um leque muito alargado de sonoridades fruto da variedade de diferentes tubos que possui no seu interior, que são a maioria apesar de não estarem visíveis. Esses tubos e famílias de tubos tentam representar ou imitar diferentes instrumentos, o que faz de um órgão, na sua plenitude, uma verdadeira orquestra. Por essa razão, a junção com outros instrumentos resulta numa simbiose em que o instrumento solista é envolvido pelo conjunto do som de centenas de tubos e mantém o seu destaque e brilho, dado que nas infindas possibilidades do órgão este tem a capacidade de acompanhar discretamente, bem como de sobressair e impor-se com a maior força e majestade. É o par ideal para se associar a qualquer outro instrumento e ao canto. Este cruzamento que no Festival se tem procurado realizar é, de forma inegável, uma mais-valia. Desperta a curiosidade do público e ao mesmo tempo desafia a criatividade artística dos músicos. Muitos foram os que já afirmaram que pelo pretexto de ouvir um outro instrumento acabaram por se aproximar do órgão, descobrir e ficar surpreendidos e apaixonados pelas potencialidades deste.

O festival tem também como característica a realização de concertos em diversos palcos/igrejas da cidade. Como é que essa escolha de locais influencia a atmosfera e a experiência dos espectadores?

A Música é uma Arte e os próprios instrumentos são obras de arte, não apenas porque nos levam a fruir da música mas porque são admiráveis nas esculturas que apresentam e no jogo de cores e dourados que os vestem. Quando entramos numa igreja para assistir a um concerto, entramos num conjunto artístico e esse concerto é uma forma de conhecermos e valorizarmos o Património artístico e cultural na sua plenitude e diversidade. Mesmo porque tudo contribui para a completa apreciação, dado que o som do órgão e as vibrações da produção musical de um determinado espaço são únicos e levam a que a experiência de cada concerto seja irrepetível. Tendo a cidade, a “Roma portuguesa”, tão grande conjunto de igrejas e capelas, e, na quase totalidade das mesmas, um órgão, seria imperdoável que o Festival que se diz “de órgão”, mas que na realidade é do Património, não fosse também ele oportunidade de visitar algumas dessas obras primas da Arte que permanecem fechadas a maior parte do ano.

 

«Seria um erro metodológico grave pensar uma capital da Cultura, em qualquer dimensão, sem incluir este evento. Temos que ser originais e reconhecer valor ao que é singular»

 

Com a presença de mais de 500 músicos este ano, como é realizado o processo de seleção dos artistas participantes? Quais são os critérios considerados?

Surge-me a metáfora do chef que ao ganhar um importante prémio gastronómico refere que o segredo está nos ingredientes! No Festival não existem segredos, o que existe são critérios de exigência que levam à seleção, não só de músicos profissionais e de qualidade comprovada, além de um cuidado particular com os programas de cada concerto, atendendo à diversidade de público que nos visita e ao facto do sucesso exigir uma oferta diferenciada que fuja ao que são outros eventos do género. Não pretendemos competir com outros eventos ou festivais, o FIOB tem o seu lugar e dá o seu contributo para algo que ainda é necessário “afinar”, que é uma estratégia alargada para a Cultura da cidade e regional. Seria um erro metodológico grave pensar uma capital da Cultura, em qualquer dimensão, sem incluir este evento. Temos que ser originais e reconhecer o valor ao que é singular, assim como à originalidade das novas criações – a riqueza está no “todo”. A seleção dos artistas para cada edição passa, em primeiro, por dar espaço aos músicos de Braga e aos nacionais, antes de mais porque já existem em Portugal músicos que ombreiam em qualidade com o que de melhor se faz em todo o mundo. Depois, há que enriquecer, pela natural diversidade com a presença de artistas de outros países que nos tragam as especificidades regionais da música. É natural que um artista francês ou alemão apresente obras de compositores, de várias épocas, da sua nacionalidade e com isso acabamos por viajar pela música de vários países, tocada em instrumentos portugueses. Este ano o número de artistas intervenientes é elevado o que se justifica pelo tema em si da música coral, pois cada um dos 12 concertos terá um coro e, em alguns casos estamos a falar de grupos com cerca de uma centena de elementos. Essa diversidade está presente desde o início, pois se assim não fosse teríamos apenas 12 organistas, mas com outros instrumentos, coros e orquestras, que conferem essa riqueza a este Festival, chegamos neste ano especial a cerca de 500 participantes. Um número simbólico numa ocasião especial.

 

Como vê a contribuição dos artistas internacionais para a diversidade cultural do festival? Como é que isso enriquece a experiência do público local?

A presença de artistas oriundos de outros países traz consigo a diversidade da criação musical de outras geografias e culturas. Os músicos estrangeiros enriquecem o programa com a inclusão de obras que vão além do repertório mais tradicional para órgão ibérico, mas também porque trazem formas de interpretação diferentes, de escolas e estilos distintos. Esse facto confere ao Festival essa característica internacional, pelos músicos, pelas obras e pelo público que chega para assistir aos concertos, um pouco de toda a Europa.

 

Considerando a ampla gama de estilos musicais apresentada no festival, como acredita que a música e, neste caso, a(s) sonoridade(s) do órgão, podem promover a união e a compreensão entre diferentes culturas?

A música é a melhor imagem para traduzir a multiculturalidade e mesmo os valores humanos. Vejamos que num concerto de órgão, numa orquestra ou num coro todos são diferentes, os cantores, os instrumentos e mesmo os vários tubos que compõem os órgãos mas, esforçam-se para estar em harmonia, pois só assim se produz algo que é agradável ao ouvido – música. O mesmo será dizer que têm que estar todos “afinados”! A afinação é uma concordância de diferentes sonoridades e timbres, respeitando a diferença e o contributo que cada um dá para o conjunto. Ora, se na complexa missão de criar música se consegue esse entendimento o mesmo seria desejável noutros contextos. Temos que aceitar a diferença e, o saber viver com ela passa por uma adaptação de uns e outros – corrigir a “afinação”. Essa é uma lição e exemplo que a música nos deixa. Um povo que ouve música e reconhece a riqueza da diversidade é um povo que promove a paz.

 

«O Festival é democraticamente para todos, com a programação ecléctica e entrada gratuita»

 

É também a prova que a música é uma linguagem universal?

É comprovadamente linguagem universal. Dispensa tradução, todos a entendemos e apreciamos, independentemente de gostarmos mais de um ou outro estilo. E o facto de ser uma forma de comunicação que todo o recetor consegue compreender torna-a agregadora e faz com que a estes eventos culturais concorram pessoas de várias nacionalidades e etnias, de várias idades e diversificadas quanto ao grau de formação e base económica. Ajudará, sem dúvida, o facto de este Festival ser democraticamente para todos, na programação eclética, como já falamos, mas com entrada gratuita. E esse esforço é feito precisamente para que ninguém seja privado de Cultura de qualidade. Claro que isto é possível, e há que louvá-lo, graças ao mecenato cultural de importantes empresas da região que partilham desta responsabilidade social, cultural e educativa de contribuir para uma sociedade melhor, onde a Cultura não pode ser encarada como um “extra”, como algo que possa ser dispensável. O importante estadista Winston Churchill afirmava que a Cultura era o essencial de um povo e que sem ela não havia nada pelo que lutar, quando o interrogavam sobre a hipótese de cortar o orçamento da Cultura para financiar o esforço de guerra. A música faz parte de nós e chega a ser curioso que, mesmo a sonoridade dos órgãos históricos que encontramos em Braga, nos toque de forma especial pois inspira-se nas vozes das pessoas e, por isso, estes órgãos soam de forma diferente aos congéneres franceses, italianos ou alemães. O órgão histórico português tem características sonoras próprias que respondem a características culturais das gentes das regiões em que se inserem, a começar pelo facto de serem pequenos instrumentos, mas com som forte e timbre brilhante. No contexto da “linguagem universal”, nem de propósito a edição deste ano terminará com a Nona Sinfonia de Beethoven, conhecida pelo quarto andamento “Coral”, com a célebre melodia do “Hino à Alegria”, o hino da Europa, mas que ao ser adotado pela União Europeia apenas ficou com a música, sem o poema em alemão, precisamente porque a música seria entendida por todos da mesma forma e dispensava tradução.

Além dos concertos, o festival oferece outras atividades ou iniciativas para promover a interação entre os músicos e o público?

Ao longo de uma década procurou-se diversificar a oferta cultural e artística e assim, a par dos concertos, surgiram as visitas guiadas aos vários órgãos, inclusive ao interior dos grandes órgãos da Catedral, mas também exposições, algumas delas com o contributo de trabalhos realizados por alunos das escolas de cidade, conferências por especialistas na área, como o musicólogo Rui Vieira Nery. Mas deve-se salientar que o Festival não se resume a duas ou três semanas num ano, pois as visitas e os momentos em que os órgãos se dão a ouvir multiplicam-se ao longo do ano, em muitas outras iniciativas, especialmente junto do público escolar. Recordo que, quando da Pandemia, se realizou uma visita aos órgãos da Catedral para cerca de 5000 crianças, no pré-escolar e 1.º ciclo, de escolas de todos o país, utilizando os meios digitais que proporcionaram a estas crianças, mesmo estando em Vila Real de Santo António, entrar e conhecer estes instrumentos fenomenais. Trata-se de preparar o futuro, formar os públicos que, futuramente poderão estar presentes a assistir aos concertos. E este é, um dos aspetos de que nos devemos orgulhar, de em 10 anos passar de um cenário de igrejas vazias nos concertos para igrejas cheias e onde o número de jovens tem aumentado a cada ano, e muitos já sabem o que é um órgão.

 

«Um olhar para o futuro do Festival só faz sentido com uma mudança de paradigma face à valorização do conjunto patrimonial constituído por todos os órgãos históricos da Arquidiocese»

 

Qual é a importância do Festival Internacional de Órgão para a cidade e para a comunidade local?

O Festival tem sido o veículo para partir à redescoberta do Património, de um tesouro que estava esquecido e que é de todos. Estávamos numa situação em que ouvíamos as pessoas a chamar “piano” aos órgãos, a dar o nome de um instrumento que também tem teclas mas que surge nos finais do século XVIII face ao órgão que nasceu há cerca de 3000 anos. Em Portugal associa-se muito o instrumento “órgão” ao espaço das igrejas, o que decorre do facto de não termos uma tradição de possuir órgão nos auditórios, como acontece nos restantes países do mundo. Seria bom que a cidade pudesse contar um espaço dedicado às artes e que possuísse um grande órgão de concerto. Quiçá um dia! Então, o maior enriquecimento para a comunidade é o cultural e a homenagem que fazemos às gerações que no passado nos deixaram em herança estes instrumentos de qualidade. Não podemos, contudo, ignorar que existe um benefício económico para a cidade com a realização deste Festival. O público que visita a cidade para assistir aos concertos fica alojado na hotelaria local, visita outros pontos de interesse, saboreia a nossa boa gastronomia e leva o nome da cidade além-fronteiras. Este aspeto, confesso, sinto que não é ainda reconhecido pelas entidades relacionadas com os setores económicos, apesar dos dados referentes ao acréscimo de turistas nos dias do Festival.

 

Olhando para o futuro, quais são as aspirações ou os objetivos para o festival nos próximos anos?

Como é típico cantar e desejar a cada aniversário, pois “felicidades e muitos anos de vida”! Mas, com um certo realismo, há que repensar a dimensão e a importância que o evento tem para a cidade e os muitos benefícios que dele advêm. Em primeiro lugar pela necessidade do som dos órgãos estar presente ao longo do ano nas várias igrejas, na função para que foram construídos, o de solenizar as celebrações religiosas, e para isso a Igreja, em particular o clero, tem que despertar para essa necessidade e, com (in)formação, ter a sensibilidade necessária para compreender que o cuidado com a qualidade musical das celebrações é essencial para a evangelização. Não teremos igrejas com fiéis onde não exista exigência com a qualidade da música litúrgica. E para isso é necessário recuperar o tempo em que não se formaram organistas e músicos com aptidão técnica e litúrgica. Um verdadeiro organista não toca numa imitação eletrónica quando tem um genuíno instrumento, cuja sonoridade e capacidade de imprimir às celebrações, a solenidade é incomparável. A qualidade e conhecimento tem que ser valorizados. O Festival veio, na sua dimensão cultural, mostrar que o som do órgão é belo e que as pessoas apreciam a música erudita e sacra, desde que com qualidade. Um olhar para o futuro do Festival só faz sentido com uma mudança de paradigma face à valorização do conjunto patrimonial constituído por todos os órgãos históricos da Arquidiocese. Onde a manutenção e valorização dos instrumentos, bem como a sua recuperação, seja uma prioridade e exista um plano para esse fim. Claro que ao afirmar que este património é de todos incluímos todas as instituições e mesmo a população que tem dos principais impulsionadores desse movimento. Existindo vontade e um real conjugar de esforços poderemos pensar na 11.ª edição e nas seguintes, com a ambição de crescimento e maior internacionalização do evento. Há muito para fazer e não faltarão, de certeza, programas originais para apresentar nos órgãos de Braga para que a mesma seja, de facto, a cidade dos órgãos históricos.

 

Há alguma novidade já pensada para a próxima edição que possa partilhar conosco?

O Festival tem-se feito ano após ano embora tivesse, desde o início, um plano para estes dez anos e para os diferentes temas que foram servindo de base à programação de cada edição. A décima edição é o momento para avaliar e, junto com as instituições que organizam o evento, decidir o melhor caminho a seguir. Claro que com o tesouro que possui, a cidade de Braga tem todas as condições para seguir com um grande Festival, mesmo porque o mais complicado que foi fazer nascer o evento está concretizado. Como dizíamos atrás, a conjugação do órgão com outros instrumentos, estilos e épocas é infindável e não faltarão ideias para mais 100 edições de Festival. E, como foi até agora, sabendo ouvir o público.

 

Defende a necessidade de em Braga se delinear uma estratégia para a recuperação de órgãos e formação de novos organistas. Quais são os primeiros passos que devem ser dados para a materialização desse anseio?

Não faz sentido recuperar os órgãos e, no limite, ter um Festival Internacional de Órgão com a maioria dos instrumentos “calados” quase todo o ano. Estando entre os objetivos do Festival, estimular o interesse pelo órgão e pela sua música. Isso já acontece e todos os anos existem pessoas que questionam onde podem aprender a tocar este instrumento. Já alguns passos foram dados, mesmo com a criação da Escola de Música Sacra da Arquidiocese, onde existe a classe de órgão, mas falta ainda o retomar da oferta de órgão no Conservatório de Braga, visto ter sido dos primeiro em Portugal a ensinar este instrumento e agora, sem que exista uma explicação razoável, não tem essa oferta no seu currículo. Faz todo o sentido na cidade de Braga, cidade dos órgãos, não é cidade dos pianos ou dos violinos, com todo o mérito e importância que todos os instrumentos possuem. Hoje, a oferta de órgão está presente em quase todos os Conservatórios e Academias de Música do país e era importante que os jovens de Braga pudessem também contar com essa opção artística. Por outro lado, estando os órgãos nas igrejas, há que reconhecer valor a quem toca e apoiar a que prossiga estudos musicais ou frequente formação de aperfeiçoamento, que pode ser ministrada pelas instituições eclesiásticas, podendo dar uma atenção especial aos conhecimentos de liturgia, além do saber técnico-musical. Mas com atenção a que tudo deve ser construído com pedagogia e adequação ao público a que se destina, não havendo fórmulas de sucesso universal. No que toca à recuperação dos órgãos as oportunidades surgem, tanto ao nível do financiamento comunitário, como ao abrigo do mecenato, mecanismos e oportunidades para o restauro deste tipo de bens. Para que se passe à ação terá que se definir que a recuperação e valorização dos órgãos históricos é uma prioridade. De facto, recuperar um órgão histórico é um investimento, na verdadeira acepção do termo, pois muitas vezes representa um valor igual ou menor à compra de imitações. Existe muita desinformação. A isso acresce o facto de para o bom funcionamento um órgão tem apenas de ser tocado, sendo essa a manutenção, ao contrário de muitos mitos que se foram construindo. O custo de um restauro ou mesmo de construção de um órgão acaba diluído na durabilidade do mesmo e na inquestionável qualidade do som original. Há alguns anos chegou a existir um plano, juntamente com a ex-Direção Regional de Cultura do Norte, para o restauro dos órgãos mais significativos da cidade, entre eles Tibães, Pópulo, São Vicente, Carmo e Bom Jesus. Opções políticas não permitiram que este projeto desse frutos, pelo menos até hoje.

 

Partilhou também recentemente o “sonho” de ver Braga dotada de um grande auditório público com um grande órgão de tubos e de um museu do órgão e da música. Quais são as suas ideias neste propósito?

Temos que ler a importância deste Património na sua globalidade. Apesar do Festival, enquanto evento, ter alcançado sucesso nestes dez anos, não estará completo se não virmos este fenómeno nas várias potencialidades que oferece. Tal como a memória se estava a perder devido ao facto dos órgãos não tocarem, a componente educativa sairia enriquecida com a criação de um espaço que reunisse vários instrumentos que, musealizados, colocassem em evidência a importância de Braga neste contexto e recuperasse esse conhecimento. Os museus são isso mesmo – espaços para se manter viva a memória. Ao mesmo tempo, esse espaço que não se pretendia apenas dedicado ao órgão, mas antes à Música, seria um espaço multifacetado onde se contasse a história da música, com especial enfoque à música em Braga e aos instrumentos originais da região. O órgão teria, como parece justo, pela sua importância e antiguidade, um lugar central. Há que recordar que o registo mais antigo da presença de um órgão em Braga surge de uma imagem encontrada em escavações arqueológicas em Braga, numa peça com cerca de 2000 anos. Ao mesmo tempo não existe no Norte nenhum espaço museológico dedicado à música. Mais uma vez importa reunir esforços e agir.

 

O que espera da edição deste ano, que momentos gostaria de destacar da programação e qual o número aguardado de espectadores?

Cada edição é para o diretor artístico como se fosse a primeira. Apesar de se colocar todo o empenho e ponderação nas opções que se tomaram ao nível da programação nunca sabemos se as escolhas realizadas terão o melhor acolhimento por parte do público. Na edição 2023 recebemos mais de 6000 pessoas. Este ano esperamos, pelo menos, um número próximo, mesmo pela aposta em grandes concertos como o de abertura na Catedral com os dois órgãos em diálogo e a inclusão do Cante Alentejano. Também o concerto a dois coros com obras de Bach e Rodrigues Esteves, na igreja de São Lázaro; o coro de crianças que chegam de Paris para atuarem no dia 13 à tarde, na Capela Imaculada; a música para as exéquias reais e de Estado, de Purcell e Victória, na Basílica dos Congregados; os diálogos entre coro e órgão na igreja de Santa Cruz; o solene Te Deum, de Lully, uma obra impressionante para dois coros, órgão, orquestra e solistas, numa rara interpretação na igreja do Pópulo; e o final grandioso com a interpretação da Nona Sinfonia de Beethoven, a “Sinfonia Coral”. Motivos não faltam para visitar Braga e, em especial, para os bracarenses conhecerem melhor este Património constituído pelos órgãos e pela sua música. O programa do Festival pode ser conhecido no site oficial www.festivalorgaobraga.com e no Facebook.

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