Começo por dizer que não consigo ser totalmente imparcial quando o assunto diz respeito a Mario Vargas Llosa. É, sem sombra de dúvida, um dos meus escritores preferidos e até hoje ainda não li nada dele que pudesse dizer que não vale a pena. Com uma infância difícil, marcada por alguma violência e imensa repressão, Llosa costuma utilizar apontamentos da sua própria vida nos livros que escreve. O caso da obra que vos trago hoje, “A Tia Júlia e o Escrevedor”, não é exceção.
O livro conta-nos a história de Varguitas, um jovem escritor peruano que se apaixona… pela tia (Júlia), bem mais velha. Ao mesmo tempo, o jovem faz amizade com Pedro Camacho, um autor de radionovelas muito afamado na região. No Peru dos anos 50, as famílias (e sobretudo as mulheres!) paravam o que quer que estivessem a fazer para ouvir as radionovelas. Era o momento alto do dia e Pedro Camacho era o melhor a fazer aquele trabalho. Um génio excêntrico de manias estranhas a quem tudo era perdoado em prol da sua “genialidade”. Contudo, e tendo em conta o grande volume de trabalho do radionovelista a certa altura – escreve as suas histórias durante 12, 14 ou 16 horas diárias –, as coisas começam a não correr bem. Pedro Camacho está cansado e começa a confundir histórias e personagens.
Quando ia sensivelmente a meio do livro, dei por mim a pensar que estava mesmo cansada, já que até a história perante mim parecia estar a desmoronar-se. Dava por mim a folhear as páginas anteriores e a confirmar nomes, locais e histórias. Só uns capítulos adiante percebi porquê. Nota: o livro vai alternando entre capítulos a história de Camacho com a de Varguitas. Sobre esta parte, mais não digo, sob pena de vos tirar a alegria desta história. Comprem o livro (ou peçam-no emprestado), garanto que não se vão arrepender!
Enquanto a vida de Pedro Camacho definha, o romance entre Varguitas e a Tia Júlia também parece ter os dias contados. Não é difícil perceber porquê: como é que a história de amor entre um jovem de 18 anos (sim, leu bem!) e uma senhora de 32, recém-divorciada, sobrinho e tia (mesmo que por afinidade), poderia algum dia dar certo? Era ex- pectável que Júlia arranjasse “um bom partido”, alguém endinheirado e socialmente bem colocado. Pretendentes não lhe faltam e a família bem tenta arranjar-lhe um bom casamento, apresentando-lhe respeitáveis senhores que por certo a fariam feliz. Com o mundo nas mãos, porque haveria “Julita” de ceder a uma paixão pueril? Ainda por cima, e relembro, a história passa-se em Lima, Peru, nos anos 50. A sociedade não tinha a abertura que existe nos dias de hoje, o que comprovamos com a reação da família dos enamorados ao romance tão impossível quanto inevitável. De bestiais – tia e sobrinho pareciam ter, antes de se terem dado a desaires, um futuro risonho –, depressa passam a bestas. O que a família não prevê é a teimosia de um e a fé no amor do outro…
É muito complicado falar sobre este livro sem desvendar o que acontece e o que o futuro reserva a estas três personagens. Parece-me, e sobretudo através da sátira de Pedro Cacho, que Llosa também tenta com este livro fazer uma crítica à profissão de escritor. As horas de trabalho, o pouco reconhecimento, o sucesso volátil, os sacrifícios que é preciso fazer para sobreviver… Quem gostar de escrever, certamente não deixará de sorrir (ou de verter uma lágrima) com esta obra.
Deixo-vos com uma citação do livro a esse propósito: “Cada vez se me tornava mais evidente que a única coisa que queria ser na vida era escritor e cada vez, também, me convencia mais que a única maneira de sê-lo era entregando-me à literatura de corpo e alma. Não queria de modo nenhum, ser um escritor a meias e aos bocadinhos, mas sim um de verdade, como quem? O mais próximo desse escritor a tempo inteiro, obcecado e apaixonado pela sua vocação, que conhecia, era o radionovelista boliviano: por isso me fascinava tanto”. Até ao próximo mês!
Flávia Barbosa