Há histórias que nos conquistam, não pela sua elevada qualidade ou personagens inesquecíveis, mas porque nos tocam no âmago, fazendo-nos reviver passados e sentimentos. Foi o que aconteceu comigo e com este magnífico livro da autoria de João Reis, uma das vozes contemporâneas da literatura portuguesa que, nesta edição, o desafio a ler.
Narrada por um menino de dez anos, a história d’A Avó e a Neve Russa inicia-se com uma composição – sim, daquelas que se fazem na escola – em que nos é apresentada uma família de emigrantes russos e ucranianos no Canadá. O nosso pequeno narrador conta-nos, então, que nasceu no Canadá, país onde vive com a avó e o irmão, mas a sua família vem da antiga União Soviética. Os avôs maternos nasceram e viveram, parte da sua vida, em Moscovo onde, para além de casar, tiveram a filha Dominika, mãe do nosso interlocutor. A certa altura, a família mudou-se para Prypiat, Ucrânia, onde o avô trabalhou como engenheiro na central nuclear de Chernobyl até ao terrível acidente de 86 que o vitimou. Entretanto, e ainda antes do acidente, a mãe conheceu o pai Ivan com quem teve os seus dois filhos, Andrei, nascido na Ucrânia, e o nosso narrador, nascido já no Canadá, depois da família ser obrigada a abandonar tudo em Pripyat e emigrar para aquele país. Desde o seu nascimento, o nosso narrador perdeu a mãe e o pai. A primeira, porque morreu, o segundo porque os abandonou. Assim, ficou só ele, o irmão e a avó – a quem, carinhosamente, chama de Babushka – que tudo fez para garantir a sobrevivência e qualidade de vida da família. Sucede que apesar de ter sobrevivido a Chernobyl, a Babushka não conseguiu escapar aos seus efeitos apresentando problemas de saúde graves condicentes com efeitos tardios da radiação. Ela está a morrer, mas o seu neto mais novo tudo fará para a salvar.
A Avó e a Neve Russa é um livro carregado de ternura, ingenuidade e memória. O nosso narrador é um menino de dez anos incrivelmente maduro para a sua idade, com um sentido de humor cáustico e dotado de bravura excecional. Em face de um destino inevitável, não hesita em lutar pela família, seja enchendo a avó de canónicos (imagens dos seus santos devotos), numa vã tentativa de a deixar melhor, seja embarcando numa viagem com destino ao México, para a descoberta de uma planta milagrosa. Pelo meio, ele vai conquistando, não só o leitor, mas um conjunto de amigos improváveis com a sua inteligência, sagacidade e empatia. É, para mim, talvez das personagens mais cativantes que tive o prazer de ler.
Para além de uma narrativa emotiva e recheada de esperança, o romance de João Reis oferece, ainda, um vocabulário rico e um estilo literário discursivo único que se destaca no universo literário nacional. A sua voz é incisiva e, não poucas vezes, mordente, mas também carregada de uma nostalgia e sentimento incomuns. Aliás, este é, igualmente, um livro carregado de memória e saudade dos que partiram e, acima de tudo, daquela visão que só a infância permite.
“As folhas caídas das árvores giram à minha volta com o vento, mas aperto mais o casaco, porque nem o vento nem as folhas-bailarinas me alegram com a melancolia, só me deixam ensopado em tristeza, como a chuva nos faz por vezes. Os homens não choram. Avanço. Os catos que vejo alinhados na rua voltam a ser árvores e a Babushka, deitada na cama de hospital, é uma criança que aumentou e encolheu.”
Daniela Guimarães
Blogger de Literatura
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