Camila. Oh, Camila. Inevitavelmente, tu. Camila era escritora e trabalhava numa editora. Era uma mulher independente, muito bonita (embora não o soubesse), cheirava sempre a roupa lavada, tinha o cabelo castanho claro pelos ombros e a rebentar de caracóis, sustentava um brilho em lume sem vento nos seus olhos largos cor de avelã, mas que conforme o seu estado ficavam quase verdes. Era dona de uma pele quente onde apetecia encaixar um abraço, sempre foi muito focada nos seus projetos pessoais, e era desprendida do que não suportava. Camila não se permitia fingir e, não por não ter quem a idolatrasse, mas não conseguia estar com alguém para somente se divertir.
Ela assume uma viagem sozinha desde sempre. Pode parecer estranho para a altura, pois vivemos num mundo em que as pessoas são objetos descartáveis. Um horror! E, embora tivesse tido alguns encontros, ninguém ainda lhe tinha oferecido ao seu bonito coração uma jarra de flores. Ela é daquelas pessoas que sabe estar sozinha e que vive bem com a sua presença. Não tem a síndrome da solidão, de estar com alguém por não querer estar sozinha. Camila, sendo uma mulher inteligente, sabe que a sua felicidade começa nela. Mas a vida agarra e, quando achamos que a chuva de cores não trespassa as páginas de um livro e que tudo só é para os outros, eis que somos injetados com inúmeras borboletas do amor.
Tudo começou a 8 de outubro de 2008, quando Camila apanhava o comboio urbano em Braga, às 8h04, rumo ao Porto, São Bento, para o trabalho. Sentou-se na primeira carruagem, do lado direito, junto à janela, virada para a frente, na quarta fila que faz o limite para a próxima carruagem. O sol nasceu naquele dia e esvoaçava pela cidade, ao sabor da brisa ténue que beijava a pele. Apresentava-se cheio de energia, fazendo um contraste forte, impossibilitando (quase) que as pessoas se vissem. E, apesar da preguiça, aquela hora não abandona o seu sabor doce e materno. O comboio encontrava-se cheio e os lugares vazios são sempre um achado. Contudo, Camila, já sentada, sempre concentrada nas suas coisas, abstraía-se de toda aquela azáfama madrugadora. Escutava a sua playlist e tomava nota dos seus pensamentos num caderno às bolinhas pretas cheio de gatafunhos. Sendo que eram poucas as vezes em que levantava o rosto para se fazer respirar das coisas que fazia. Era literalmente um mundo muito próprio.
A viagem ia acontecendo como o habitual e Camila não se resumia a menos. Porém, num descomprimir corporal, faz uma espécie de alongamento, sendo obrigada a retirar os olhos do seu caderno e, claro, tudo acontece. Boa, Camila, finalmente vais ver o mundo, nem que seja dentro de um comboio. Aquele silêncio que cobre todo o espaço envolvente, sólido, de quando as pessoas esperam por coisa nenhuma, foi ativado naquele instante. Camila deixou de ser só ela. É como … como depois ele chega, fecha a porta e tudo fica nos seus lugares, tudo fica finalmente arrumado e perfumado, tudo fica bem e composto, como se o ruído da porta a concluir-se fechada fosse de facto transformador. Uma voz interior segredou-lhe com uma intensidade que não se justifica – “Não vais precisar de mais nada!”. Foi como se a primavera chegasse no outono. Até quando? Ainda não se sabe. Ninguém consegue ter mão nos sonhos, por isso vamos deixar liberta as asas destes dois. Camila, cética, só se deixa pensar – “Que absurdo!”. Queria lá considerar isso para alguma coisa.
(a próxima edição continua a acrescentar confettis de amor a esta história)
Juliana Gomes, escritora
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