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ENTRE O APITO E O ESTETOSCÓPIO.  A história inspiradora de Tânia Patrão

Aos 25 anos, Tânia Patrão fez história na arbitragem nacional ao ser a primeira mulher a dirigir uma final distrital masculina, nomeadamente a Supertaça da Associação de Futebol de Braga. Recentemente, recebeu o galardão “Melhor Árbitro/a”, atribuído na IX Gala do Desporto do Município de Braga. Natural de Covelo do Gerês – Montalegre, concluiu, em 2023, o mestrado integrado em Medicina, estando agora a exercer a especialidade de Ortopedia na Unidade Local de Saúde (ULS) do Alto Minho, em Viana do Castelo. Entre decisões no relvado e diagnósticos na vida, Tânia Patrão segue um trajeto inspirador. Nesta entrevista, saiba como divide o seu tempo entre estas duas paixões tão exigentes.

Txt: Vasco Alves      Pic: André Arantes

Como começou o seu percurso na arbitragem e o que a motivou a seguir esta área num desporto tradicionalmente dominado por homens? Sempre tive uma relação muito próxima com o desporto, sendo que desde que me recordo adorava ver futebol. O convite para a arbitragem surgiu por parte de um primo que já era árbitro e pareceu-me um desafio interessante. Ingressei no curso de arbitragem na Associação Futebol de Braga em 2014. No entanto, o número de árbitras aumentou substancialmente nos últimos anos. Há 11 anos, quando entrei neste mundo, era recebida nos jogos com bastante admiração. Atualmente, isso já não é tão evidente. Nos últimos anos, tem havido uma aposta crescente e a prova disso é a integração no quadro AAC1 (Árbitros Assistentes da Primeira Liga Masculina) de uma assistente mulher, a Andreia Sousa.

Recorda-se do seu primeiro jogo como árbitra? Como correu? Sim, é algo difícil de esquecer. Foi num jogo de iniciados e recordo-me de estar extremamente nervosa, com um medo inerente de errar e da reação que poderia ter nos intervenientes do jogo. Lembro-me de me sentir assoberbada com tantas coisas que tinha para decidir e controlar: ver faltas, ver para que equipa era o lançamento, estar sempre atenta ao fora-de-jogo. Inicialmente começamos o nosso percurso na posição de árbitro assistente, que se torna mais confortável por termos sempre o auxílio direto do árbitro principal.

Qual foi o momento mais marcante da sua carreira até agora? A final masculina da Supertaça de Futebol da AF Braga foi, certamente, um marco. Como foi essa experiência? Revelou-se uma experiência muito positiva, o clima inerente a uma final é sempre inexplicável. Foi um jogo extremamente equilibrado e bem disputado, que me deu uma satisfação imensa de arbitrar. Foi a primeira final na Associação de Futebol de Braga arbitrada por uma mulher. Espero que, de certa forma, esta nomeação permita, num futuro próximo, que a nomeação de árbitras para este tipo de jogos seja algo mais natural. Estamos a quebrar paradigmas, para que no futuro esta realidade seja já algo usual.

E o momento mais difícil? O momento mais difícil foi uma lesão, uma fratura do hallux, no início da época que subi à Liga BPI, a primeira liga de futebol feminino. Estava entusiasmada por iniciar, uma vez que foram anos de trabalho árduo para alcançar aquele patamar. A lesão fez com que estivesse afastada por uns meses. Considero que esta é sempre a parte mais difícil para qualquer atleta, estar fora da competição e não o conseguirmos controlar.

Que tipo de preparação física e mental é necessária para estar ao mais alto nível da arbitragem nacional? Os árbitros são equiparados a qualquer outro atleta de alto rendimento. Temos os treinos físicos, em grupo, geralmente bissemanais. Os árbitros profissionais frequentam polos profissionais onde treinam diariamente, tanto a parte física, como a teórica (com visualização de lances e trabalho em campo). Para além destes treinos, para estarmos na nossa melhor condição nos jogos, complementamos com treinos adicionais, a título pessoal. Temos também momentos avaliativos, que têm lugar duas vezes por ano, com uma prova física e escrita. Relativamente à parte mental, temos um departamento de psicologia desportiva, com profissionais que analisam os jogos que arbitramos e nos ajudam na vertente comportamental da figura do árbitro. Temos, como exemplo, a gestão de conflitos, gestão emocional do árbitro e a linguagem gestual, entre outros.

«São duas áreas que exigem estudo constante e dedicação extrema, mas gosto verdadeiramente do que faço e acho que este é o pilar fundamental em tudo»

Quais os principais desafios que enfrentou como mulher na arbitragem de futebol masculino e como costuma ser a reação das equipas e dos adeptos à sua presença em campo durante os jogos?Atualmente, raramente sinto qualquer reação pejorativa, como por exemplo de desconfiança no meu trabalho ou estranheza, vinda de jogadores ou elementos da equipa técnica. Relativamente aos adeptos, a falta de cultura desportiva atual leva a que os árbitros sejam sistematicamente insultados nos vários jogos que arbitram. Inevitavelmente, há alguns insultos que são dirigidos ao sexo feminino, especificamente.

Sente que o panorama da arbitragem em Portugal está a mudar no que toca à inclusão de mulheres?Sinto que há uma mudança significativa no acesso às oportunidades. Atualmente, há árbitras que estão a competir somente na vertente masculina. Foi, igualmente, criado um quadro de árbitras profissionais, tendo acesso a todas as ferramentas que há na vertente masculina.

Além de árbitra de futebol, é também médica. Como é dividido o seu tempo entre estas duas paixões tão exigentes? Gosto verdadeiramente do que faço, acho que este é o pilar fundamental em tudo. São duas áreas exigentes e a conciliação de ambas ainda implica um grau de esforço maior. No entanto, as experiências novas que ambas me proporcionam e o fazer algo que gosto verdadeiramente compensam toda a dedicação e sacrifício.

Já teve momentos em que sentiu que seria difícil continuar a conciliar ambas? O que a motiva a seguir em frente? São duas áreas que exigem estudo constante e dedicação extrema. A conciliação é difícil e implica uma gestão horária muito apertada, costumo dizer que tenho todo o tempo contado ao segundo. O estudo para a prova nacional de acesso à especialidade foi um período exaustivo, em que foi complicado manter o nível de treino e a performance nos jogos. No entanto, a disciplina e uma rede de apoio coesa de família e amigos permitiu-me realizar ambas as tarefas com sucesso. Gosto do que faço, permite-me diversificar o dia-a-dia e ter acesso a experiências muito diferentes.

Acredita que a medicina contribui, de alguma forma, para o seu desempenho enquanto árbitra? Ou vice-versa? Embora pareçam mundos totalmente díspares, identifico bastantes semelhanças, que me permitem ser uma melhor profissional em ambas as vertentes. A arbitragem permitiu-me desenvolver a capacidade de tomada rápida de decisão, o trabalho em equipa e liderança, que aplico sistematicamente na minha vida enquanto médica.

«Defendo sempre que a meritocracia deverá prevalecer. A escolha da pessoa mais competente será sempre a escolha lógica, independentemente do sexo»

Como vê o seu futuro a médio e longo prazo? Há um plano para continuar nas duas áreas ou terá de fazer uma escolha? Não gosto de fazer planos a longo prazo, pois as coisas estão constantemente a alterar. Ingressei no internato médico de Ortopedia este ano, algo que acaba por ser muito exigente. No entanto, tenho o compromisso de conciliar ambas as atividades o máximo de tempo possível.

Como descreve a sensação de fazer história ao ter sido a primeira mulher a dirigir uma final masculina da AF Braga e o que pensa que a sua conquista representa para outras jovens que sonham em ser árbitras? Considero que de certa forma esta nomeação irá permitir, num futuro próximo, que a nomeação de árbitras para este tipo de jogos seja algo mais natural. Defendo sempre que a meritocracia deverá prevalecer. Estamos a quebrar paradigmas, para que no futuro esta realidade seja já algo natural e usual. Fico contente por ter a oportunidade de contribuir positivamente para esta mudança de paradigma na arbitragem.

Que conselhos daria a outras mulheres que pretendem seguir o caminho da arbitragem no futebol?Gostava de transmitir que se gostarem verdadeiramente do que fazem e se trabalharem arduamente, todo o esforço é recompensado. A competência é desprovida de rótulos. A arbitragem permite-nos estar em jogos de patamares que de outra forma seria impossível, são experiências que nos marcam e nos enriquecem.

Em termos de igualdade no desporto, o que gostaria de ver melhorado nos próximos anos, tanto em Portugal como a nível global? Defendo sempre que a meritocracia deverá prevalecer. Ou seja, a escolha da pessoa mais competente será sempre a escolha lógica, independentemente do sexo. Gostava que a questão da maternidade nas atletas tivesse um acompanhamento mais diferenciado, especialmente relativamente à vertente psicológica e financeira. Sinto que ainda é um assunto tabu, que se tenta protelar, mas que é inadiável na vida de uma atleta mulher. No que concerne à arbitragem, há alguns anos atrás uma gravidez implicava uma descida de divisão. Atualmente, a árbitra mantém a categoria e é dado um período alargado para que a árbitra possa recuperar e preparar a retoma à competição, com um suporte adequado.

«Gostaria de arbitrar uma final, a nível nacional»

Para si, o que significa sucesso na arbitragem? Há algum objetivo específico que ainda gostaria de alcançar? Para mim, o meu sucesso na arbitragem está intimamente ligado com boas performances nos jogos, sendo que o erro é algo inato e impossível de evitar. O objetivo passa sempre por errar o mínimo possível. Como objetivo a médio prazo, gostaria de arbitrar uma final, a nível nacional.

Como imagina o futuro da arbitragem feminina em Portugal? O futebol feminino em Portugal está a crescer exponencialmente, fruto do trabalho árduo de várias entidades, que visam dar visibilidade e melhores condições de trabalho às atletas. A arbitragem feminina acaba por, impreterivelmente, acompanhar este crescimento. O número maior de atletas reflete-se num número mais elevado de jogos, com maior competitividade e qualidade. Para mais jogos, serão sempre necessárias mais árbitras, o que permite um desenvolvimento e captação de árbitras para moderar esses jogos.

Que referência(s) tem na arbitragem e no desporto em geral? E porquê? A minha maior referência na arbitragem é o meu primo, Silvino Patrão, que me introduziu nesta realidade e me apoiou, incansavelmente, ao longo de todo o meu percurso. Também a Andreia Sousa, que se tornou esta época a primeira mulher assistente na primeira liga masculina, é um modelo de referência. Consegue conciliar a carreira de arbitragem ao mais alto nível, com a maternidade e a sua vida profissional, o que constitui exemplo de profissionalismo e superação sem igual.

Gostaria de deixar alguma mensagem para os leitores que acompanham a sua trajetória ou para os que têm curiosidade sobre a arbitragem? Gostava de fazer um convite a todos os leitores que apreciem a modalidade de futebol a aventurarem-se a tirar o curso de arbitragem.

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