ENTREVISTA A CARLOS FERNANDES, JUIZ DA CONFRARIA DOS GASTRÓNOMOS DO MINHO
Carlos Fernandes, Juiz da Confraria dos Gastrónomos do Minho e professor na área de Turismo no Instituto Politécnico de Viana do Castelo recebeu-nos na sua casa em Parada, uma encantadora e típica aldeia do Alto Minho, inserida na freguesia de Lindoso, Ponte da Barca. Abraçados por imponentes montanhas e rodeados pela infinita, tranquila e pacata natureza, conversamos sobre Gastronomia, numa entrevista onde aborda a valorização do produto local, o papel das confrarias, a identidade do produto, os sabores e as novas exigências do consumidor. A Gastronomia Tradicional Minhota esteve em cima da mesa e, como tal, a conversa foi abrilhantada com petiscos oriundos da “Delicias da Serra Amarela”, um projeto familiar local que aposta na produção de enchidos regionais, licores, compotas e na realização de diversos serviços para eventos e festas.
Conte-nos um pouco da história da Confraria Gastrónomos do Minho. Como define esta entidade e quais são os seus principais objetivos?
A Confraria dos Gastrónomos do Minho nasceu do 1.º Congresso de Gastronomia de Viana do Castelo em 1984, altura em que foi aceite, por unanimidade, associar-se à Região de Turismo do Alto Minho e a Região de Turismo do Verde Minho (recém-criada) com vista à criação de uma única Confraria representativa do Minho. Foi constituída oficialmente a 28 de abril de 1986. É um dos objetivos da Confraria dos Gastrónomos do Minho «promover a investigação do património gastronómico minhoto nos seus múltiplos aspetos: receituário, arte e técnica da cozinha tradicional, seus produtos, evolução, cozinheiros famosos, relacionamento arte popular/gastronomia, pesquisa das antigas casas de comida da região e outros aspetos que permitam fazer uma reconstituição histórica da cozinha, dos nossos antepassados e da sua evolução no tempo». Devo dizer que a Confraria nunca foi de ter muitos Confrades. Atualmente, somos aproximadamente 60. A Confraria foi criada para fins de divulgação e promoção através da ex-Região de Turismo do Alto Minho (RTAM). As atividades da Confraria dependiam da colaboração do corpo técnico da RTAM. Com a extinção das Regiões de Turismo, desde 2012 que não temos esse apoio, o que alterou a nossa forma de atuação – de mais intervencionista para um papel de mais facilitador de iniciativas e ideias, como vou passar a explicar.
Que resumo faz de 2023 para a Confraria?
No primeiro trimestre de 2023, vamos realizar o ato eleitoral para eleger os novos corpos gerentes. Portanto, não vou comentar sobre o que poderá ser a orientação futura dos novos corpos gerentes. A página do Facebook tem tido um grande sucesso, com muitas pessoas a seguirem as nossas atividades e prevê-se o lançamento da página web durante o presente ano. Outras atividades em andamento é a publicação do Livro de Homenagem a Nuno Lima de Carvalho, Fundador e Mordomo-mor da Confraria.
Em que locais a Confraria está representada?
A Confraria dos Gastrónomos do Minho possui âmbito regional, podendo ter delegações em qualquer localização do território nacional e no estrangeiro. Desde a sua criação, a sede tem sido no Castelo de Santiago da Barra em Viana do Castelo.
Que tipo de iniciativas promove?
A maior iniciativa nos últimos anos foi a candidatura do Minho a Região Europeia de Gastronomia em 2016. A ideia surgiu da Confraria, foi bem acolhida pelo Instituto Politécnico de Viana do Castelo (IPVC), e depois procurou-se uma entidade na região disposta a apresentar a candidatura ao IGCAT – Institute for Gastronomy, Culture, Arts and Tourism. Foi através do Eng. Francisco Calheiros, então Coordenador do Minho-IN, que aceitou este desafio e deu andamento ao processo. A elaboração da candidatura ficou a cargo da Confraria e do IPVC. Veio a ser aprovada juntamente com a candidatura da Catalunha. Minho 2016 Região Europeia da Gastronomia conduziu a uma série de candidaturas à CCDRN para concretizar as atividades previstas no bid book. Os projetos aprovados serviram para financiar um conjunto de atividades de divulgação e promoção da gastronomia minhota pelas três Comunidades Intermunicipais e diretamente pelos Municípios. Outra atividade prevista no bid book do Minho a Região Europeia de gastronomia em 2016, é o concurso anual do Jovem Chef do Minho. Evento que junta candidatos de todas as escolas profissionais do Minho para eleger o melhor jovem cozinheiro, que vai depois representar o Minho no concurso de jovem chef europeu. Um desses concursos europeus já decorreu em Braga. Outros em que participaram jovens minhotos foram na Grécia e Noruega. A Confraria tem integrado o júri juntamente com cozinheiros e outras individualidades de mérito associadas à nossa gastronomia. A presença da Confraria dignifica os valores tradicionais da nossa gastronomia. É lembrar que sem as nossas tradições, usos e costumes deixamos de chamar gastronomia minhota e passamos a chamar simplesmente cozinha regional. Estabelecemos um protocolo com o IPVC e temos adiantado trabalho para alargar a área de atuação e incluir protocolos com entidades de promoção turística, de defesa do património imaterial e de instituição de ensino superior. Por exemplo, no âmbito do protocolo com o IPVC, participamos em eventos de cidades criativas de gastronomia da UNESCO, caso de Bergamo, Itália (2019) e Afyon, Turquia (2022). Já foi alvo de discussão nas nossas reuniões de explorar a possibilidade de uma cidade no Minho candidatar-se à UNESCO. Tem surgido outras ideias, como a criação de um Centro Regional da Gastronomia Minhota, que engloba um centro de documentação, um espaço culinário para receber grupos em forma de workshop, serviços de apoio aos nossos restaurantes, por exemplo, na área da nutrição ao estabelecer um equilíbrio entre a comida de raiz e a necessidade de ser mais saudável; e o Museu da Gastronomia do Minho. Boas ideias, mas difíceis de concretizar! Lançar a iniciativa «Onde comem os Confrades do Minho» e aproveitar a identificação destes restaurantes para criar rotas, em forma digital, a percorrer todo o território minhoto.
Quais são os projetos para 2023 e para os próximos anos?
Em consequência do Minho 2016 Região Europeia da Gastronomia, e do trabalho que tem sido feito ao longo destes últimos anos, a ênfase em 2023 está a ser orientada para as áreas rurais, no sentido de estabelecer metodologias de trabalho e fazer levantamentos que produzam conhecimento histórico da cozinha dos antepassados das aldeias do Minho. Mas, como referi anteriormente, vamos ter eleições brevemente e os novos gerentes é que vão ditar a orientação futura.
Em termos pessoais, de onde veio o gosto pela gastronomia?
Desde muito cedo que comecei a trabalhar na área da restauração. Uns dias de empregado de mesa, outros dias de assistente de cozinha. Foi em restaurantes de diáspora portuguesa. Assisti cozinheiros de diversas regiões portuguesas a preparar «comida de panela» e outras. Era ainda um jovem e fiquei logo fascinado pela gastronomia portuguesa. A forma como os cozinheiros confecionavam os pratos, orgulhosamente seguindo valores culturais da sua terra natal. Ainda hoje, quando visito comunidades portuguesas no estrangeiro, faço questão de comer em restaurantes que servem comida tradicional. Ou participo em encontros gastronómicos em Coletividades dos nossos emigrantes, como aconteceu pouco antes do Natal passado na Casa do Minho em Newark, New Jersey (EUA). A diáspora portuguesa é, sem dúvida alguma, grande defensora da gastronomia tradicional.
Em que momento é que podemos dizer que um prato é tradicional?
Sou da opinião que um prato é tradicional quando é inspirado na humilde cozinha e valores dos antepassados de uma região, enraizado na tradição dos seus usos e costumes e privilegiando os ingredientes e produtos locais de cadeias de abastecimento curtas. Relembro Nogueira Gil, “a importância do acto de comer como acto de cultura e a comida como produto da história de um povo, dos costumes, dos hábitos longamente sedimentados em escolhas, gestos, combinações, paladares sabiamente desenvolvidos e mais ou menos conservados”.
«A Confraria dos Gastrónomos do Minho é das poucas entidades que defende a Dieta Atlântica, de forma a não cair no esquecimento. Temos de voltar a dar prioridade ao conhecimento associado à gastronomia»
O que diferencia a gastronomia minhota?
Vou fazer referência às palavras de Francisco Sampaio, “o Minho pratica uma das mais “gulosas” gastronomias do espaço português. Trata-se de um território rico em produtos da terra, de farta variedade de mariscos e de peixes, o fresco do peixe lavado pelas águas límpidas dos nossos rios, o sabor a mar no marisco, o fresco do peixe lavado pelas águas do nosso mar, o prazer do “fiel amigo” o bacalhau – dourado, cozido, assado, às postas, recheado – a doçaria conventual, preciosa, delicada, a doçaria popular, arroz doce, o leite-creme queimado, as rabanadas de leite e ovos, de vinho; o pão que só o dedo mágico dos/as cozinheiros/as do Minho o sabem fazer, e como corolário de toda esta panóplia de paladares e como que a despertar o apetite, esses frescos e capitosos vinhos verdes… Alguns deles já com certificação oficial, dizem-nos que estamos no caminho certo, e valeu todo o esforço na valorização destes produtos. Esta riqueza resulta em autênticas sinfonias que o minhoto, “bom garfo”, soube bem orquestrar. Estes sabores que caraterizam a Dieta Atlântica. Em tempos, a Dieta Atlântica mobilizou a comunidade minhota. Hoje, a Confraria é das poucas entidades que defende a Dieta Atlântica, de forma a não cair no esquecimento. Temos de voltar a dar prioridade ao conhecimento associado à gastronomia.
Qual é o prato que, na sua opinião, consegue afiliar toda a região Minho?
Não me parece possível identificar um prato único que consiga afiliar toda a região Minho. Temos uma das mais ricas e diversificadas gastronomias do mundo.
Para além de conservar memórias, a Confraria Gastrónomos do Minho tem a responsabilidade também de investigar. Neste ponto, o que é que foi conseguido nos últimos tempos?
Desde 1986, a Confraria tem publicado numerosas obras dedicadas à gastronomia regional, a pensar no mercado doméstico. Ultimamente, as publicações têm sido mais direcionadas para o mercado internacional. Atualmente, estamos em processo de digitalizar todas as obras publicadas pela Confraria dos Gastrónomos do Minho, assim como outras obras de levantamentos realizados, para facilitar outras entidades responsáveis pela promoção turística, pela defesa do património cultural e instituições de ensino superior, lançar ações, visando a investigação e o estudo da Gastronomia com o propósito de divulgar e defender os valores da cultura popular de que a Gastronomia é parte integrante, assim como outros estudos de interesse para a região.
Qual é o evento âncora da Confraria Gastrónomos do Minho?
A Confraria não tem um evento único que se possa considerar âncora. Ultimamente, o seu Capitulo, ou entronização de novos Confrades, realiza-se no último sábado do mês de maio, ou seja, no dia anterior ao Dia Nacional da Gastronomia. O almoço ou ceia de Natal, também representa um acumular de variadas atividades realizadas ao longo do ano que são alvo de reflexão nesse dia. Por outro lado, fazemos o esforço para estarmos representados em atividades de outras confrarias, com especial atenção para as confrarias da região do Minho. Nos últimos anos temos vindo a testemunhar o aumento do número de confrarias, gastronómicas e báquicas, no Minho. É uma das formas dos minhotos demonstrarem sua vontade de defender as práticas tradicionais de produção, transformação e consumo associados à gastronomia do Minho. Por fim, organizamos, dinamizamos e participamos em novos eventos que demonstram a capacidade e vontade da região em adaptar-se a novas situações e novos desafios.
Sente que as pessoas aderem às iniciativas de divulgação dos produtos tradicionais?
Sim, é ver o sucesso dos fins-de-semana gastronómicos e dos muitos eventos de gastronomia na região. Dou um exemplo… há uns anos atrás, um aluno de mestrado de turismo do IPVC realizou um estudo sobre a motivação de visita a Ponte de Lima. É uma vila que atrai um número significativo de visitantes, particularmente ao fim de semana. Segundo os inquiridos desse estudo, aproximadamente 70% indicaram que o que originou a sua visita foi o arroz de sarrabulho, o prato bandeira desse Município. Verificamos a mesma situação noutros Municípios – é a gastronomia que motiva a visita.
Nestes últimos anos de mandato quais foram os momentos que mais o marcaram?
Sem dúvida, a redução (ou, inexistência por algum tempo) de ação da Confraria devido à situação de saúde pública devido à pandemia COVID-19. A partir de março, recorremos à realização de reuniões através de plataformas digitais, adaptando-nos a uma nova realidade, por forma a continuarmos a nossa atividade, apesar das dificuldades e incertezas. Logo que possível, a Direção começou a reunir frequentemente e sempre em restaurantes para mostrar o nosso apoio ao esforço feito pelos nossos cozinheiros e profissionais da restauração.
As tabernas ou casas de pasto são locais que ao longo do tempo apostaram no produto e costume tradicional, mas têm vindo a desaparecer. Como olha para essa realidade?
Tabernas e casas de pasto são conhecidas por fazer comida de panela à moda antiga, temperada com base em molhos. Há quem argumente que comida de panela leva a desperdícios alimentares e, consequentemente, ao descontrolo dos custos. E que não faz sentido fazer-se comida em panelas à moda antiga. Mas, há panelas grandes e panelas mais pequenas. Tem é que reduzir-se o tamanho da panela. Eram populares entre os trabalhadores que procuravam comida de conforto, caseira e em quantidade, acompanhada com vinho caseiro. Algumas têm sobrevivido com grande dificuldade, devido ao aumento do custo da energia (gás e luz), da segurança alimentar, da escassez de mão-de-obra ou às alterações nos hábitos alimentares dos consumidores. Outras são recentes e praticam um modelo de negócio diferente. Funcionam mais como «petisqueiras». Apresentam-se ao público pela sua comida servida em doses racionadas, reduzindo o desperdício e controlando os custos. Mas, também de certa forma num contexto de convívio informal e até mesmo de entretenimento de âmbito cultural.
«Se os restaurantes não valorizarem o que é produzido localmente, então é provável que a cozinha regional venha a passar por uma ameaça»
Acha que os pratos regionais e tradicionais estão a perder-se?
Se os restaurantes não valorizarem o que é produzido localmente, então é provável que a cozinha regional venha a passar por uma ameaça. Por outro lado, os restaurantes cada vez mais necessitam desempenhar outro papel fundamental. Sustentar não apenas os ingredientes básicos locais que compõem cada prato, mas também o conhecimento, as habilidades e a criatividade relacionadas à transformação desses ingredientes em pratos regionais e, por fim, em experiências.
E relativamente aos restaurantes, há cada vez mais diversidade de conceitos. Acha que aqueles que as pessoas frequentam regularmente, fogem cada vez mais aos pratos tradicionais?
Para conservar a nossa identidade minhota, temos de reforçar os usos e costumes da nossa gastronomia. Na minha opinião os “Restaurantes do Minho” podiam servir de designação diferenciadora e forma de classificação dos restaurantes. Quem entra num destes restaurantes, sabe que vai ter uma experiência com matéria-prima local, vinhos verdes, valores específicos deste território. Por exemplo, um mínimo de 60% de matéria-prima local para a confeção dos pratos que constam nos cardápios/menus. É um dos aspetos que diferencia o Minho enquanto território e valores culturais.
De que forma é que essas mudanças têm influenciado a gastronomia regional minhota?
Vou responder a essa pergunta com o exemplo do Cozido no domingo gordo. Uma boa iniciativa e prática dos restaurantes. Disfarçadamente, visitei vários restaurantes que tinham o cozido em destaque nesse dia. Reparei que a grande parte teve o cuidado de temperar as carnes em vinha d´alho, os enchidos eram de fumeiros locais e a hortaliça portuguesa ou penca. Estes cuidados e a opção por produtos locais é o que valoriza e distingue a nossa cozinha. Mas, também verifiquei que em alguns restaurantes não houve o mesmo cuidado e, por exemplo, os enchidos não eram dos nossos fumeiros. Eram enchidos que o cliente pode comer em qualquer parte do país e não precisa deslocar-se ao Minho. Se valorizar o que é produzido e tem origem no Minho o próprio cliente reconhece a qualidade e aceitam o preço mais elevado. O que o cliente não percebe é como um cozido que foge à matéria-prima local cobra o mesmo preço.
E como é que a Confraria olha para estas novas tendências gastronómicas, cada vez mais graduais na sociedade, como são exemplo as opções vegan, vegetariana ou gourmet?
Não gosto muito de falar de tendências na gastronomia porque o que se verifica hoje, poderá ser alterado amanhã. Mas, vamos falar, por exemplo, de comida vegetariana, de vegan; é uma opção individual. Os nossos restaurantes, geralmente, têm tido boas reações – de aceitar as coisas como elas vêm e adaptam-se. Há vinte anos, era impensável aos restaurantes terem esta reação. Agora, as opções vegetariana e vegan já se verificam em menus, e com o recurso aos ingredientes locais. O gourmet deve ser compreendido em diversas formas, desde a «alta cozinha» dependente na aliança entre a ciência e a cozinha, a uma forma de cozinha concentrada na apresentação dos alimentos no prato. O food design tem um papel extremamente importante neste conceito de cozinha, que representa aproximadamente 15% do mercado. A ameaça deste tipo de cozinha é que o foco é o chef e/ou o restaurante, enquanto na gastronomia tradicional o foco é a região, a sua cultura, o estilo de vida das pessoas, a descoberta de uma cultura diferente da que estamos habituados. A gastronomia tradicional é mais eficaz em reter quem nos visita!
E como é que a gastronomia tradicional se adapta à sazonalidade e à disponibilidade de apresentar um produto o ano inteiro? Como é que se trabalham estas características?
Temos pratos clássicos com destaque para os produtos locais frescos e sazonais e a harmonização de sabores. Temos verificado ligeira adaptação a um estilo mais moderno de confeção e apresentação dos alimentos, respeitando as tradições e o orgulho do património da região. Mas, como referi, ligeiro! Por outro lado, temos pratos clássicos que não podemos deixar de confecionar fora da época. E porquê? Ora, os nossos emigrantes que nos visitam, principalmente nos meses de verão, procuram pratos mais característicos das épocas do outono até à primavera. Os tais pratos que estão registados nas suas memórias. Comida reconfortante, por exemplo, as cabidelas, feijoadas, o cozido, esse manjar nacional que só as carnes, as hortaliças, os enchidos e fumados do Minho sabem dar o genuíno paladar.
«A gastronomia regional é um exemplo de distinção culinária que atrai os consumidores. No entanto, os gostos e preferências modernos influenciam esta geração de cozinheiros, que, por vezes, assume uma nova atitude para rejuvenescer a gastronomia regional»
Como é que se preserva um produto marcadamente tradicional quando a inovação está sempre presente numa evolução natural e é necessária para alcançar todo o tipo de públicos?
A gastronomia regional é um exemplo de distinção culinária que atrai os consumidores. No entanto, os gostos e preferências modernos influenciam esta geração de cozinheiros, que, por vezes, assume uma nova atitude para rejuvenescer a gastronomia regional. É verdade que cozinhar é um processo contínuo de aprender o que os ingredientes podem alcançar. Mas a gastronomia regional deve ser adaptada com bom senso. Vamos fragilizar a nossa gastronomia se alteramos simplesmente porque é uma tendência. Passada a euforia dessa moda, corremos o risco de tornar a nossa comida em “mais uma”, sem qualquer diferença, de uma gastronomia única para uma cozinha influenciada por produtos industrializados. O gosto deve vir sempre em primeiro lugar. Isso é possível recorrendo ao melhor que colhemos das nossas terras, rios e mar. Depois, pode-se pensar em decoração e outras técnicas inovadoras.
A gastronomia minhota assenta muito na essência dos produtos que temos. Considera portanto que a simplicidade do produto e a tradição podem andar de mãos dadas com a inovação?
Dando seguimento ao argumento apresentado anteriormente, devo acrescentar que a ameaça de que falei tem a ver com três intervenientes – os produtores, os cozinheiros/profissionais da restauração e os consumidores. Já falei dos produtores e dos cozinheiros e profissionais da restauração. Agora vou falar do consumidor. Sim, devido a diversos fatores, desde a influência da globalização, o avanço tecnológico, a pandemia de COVID-19 e outros, verifica-se uma evolução muito acelerada das mudanças nos padrões de consumo e gostos dos consumidores na sociedade contemporânea. Consequentemente, devemos lembrar que a gastronomia é baseada em culturas alimentares profundamente enraizadas nas regiões de onde vêm esses alimentos. Não um alimento específico, ou um ingrediente, mas a cultura do comer. Em essência, as culturas alimentares são práticas sociais que foram desenvolvidas durante longos períodos de tempo em determinadas regiões. Para os portugueses, comer até pode ser considerado um passatempo, com a componente de estarem juntos à mesa, em socialização, a ter um destaque considerável. Para quem nos visita, temos de os sensibilizar para apreciar os sabores culinários e na simplicidade do produto enquanto, simultaneamente, transmitir a história da tradição desse prato e o seu papel na cultura local. É esta ligação que vai tornar a nossa gastronomia mais apelativa a quem nos visita. A inovação pode envolver a comunicação da cultura para que o visitante possa melhor apreciar a comida.
Em termos de atividade da Confraria, têm percorrido Portugal e alguns países estrangeiros na promoção da gastronomia tradicional do Minho?
Temos apresentado comunicações sobre a gastronomia minhota em conferências, organizadas em diversos países por toda a Europa e Brasil. Pessoalmente, tenho participado em convívios gastronómicos em diversas Casas do Minho, por exemplo Newark (EUA) e Rio de Janeiro (Brasil) e outras associações de convívio dos nossos emigrantes no estrangeiro. Sou orgulhosamente minhoto e gosto de o mostrar por todo o lado que visito.
Qual é o seu parecer em relação a estas visitas? O que é que as pessoas lhe dizem?
Quando digo que sou o Juiz da Confraria dos Gastrónomos do Minho, as pessoas mostram um grande sorriso de satisfação. Veem na minha presença um reconhecimento por todo o trabalho de voluntariado que dedicam a essas associações que mobilizam os nossos emigrantes. Quando visitei a Casa do Minho em Newark, reparei numa multidão de voluntários. Uns no corredor, logo à entrada, a descascar batatas, cebolas, nabos, cenouras e a lavar a hortaliça portuguesa. Na cozinha tinha o cozinheiro com vários ajudantes com grandes panelas no fogão prontas para receber o bacalhau. Depois de conversar com membros da Direção e outras pessoas, algumas que até conhecia dos anos que morei naquela comunidade, sentamo-nos à mesa e fomos servidos, em grandes travessas, de bacalhau com todos. Senti uma sensação de alegria por ver esta manifestação da cultura minhota do outro lado do atlântico. Estou muito agradecido pela forma como fui recebido na Casa do Minho em Newark!
«Se todos trabalharmos para que o Minho seja um destino dinâmico, reconhecermos e valorizarmos a nossa riqueza gastronómica, o consumidor (turista) terá muitos motivos para continuar a visitar o Minho»
A gastronomia é efectivamente uma das causas potenciadoras do Turismo. A gastronomia minhota continua a ser um dos principais motivos para as pessoas visitarem a região?
Para o turista contemporâneo, destinos tradicionais e estáticos têm pouco apelo. Os turistas procuram memórias duradouras através da conexão física, diferentes tipos de experiências e desenvolvimento emocional para superar as suas expectativas durante a estadia. Um número crescente de pessoas viaja não para fugir, mas para se conectar. Pessoas que anseiam por oportunidades de conhecer novas pessoas de forma genuína. Os novos turistas procuram experienciar novos produtos, comidas e atrações, mas impacientes demais para dar uma segunda oportunidade a produtos ou serviços que inicialmente não satisfazem. O novo turista quer magia. Não se trata apenas da comida, mas do envolvimento emocional esperado, englobando a história da comida que comem, mas também detalhes sobre a sua preparação, ingredientes, etc. Mostrar que os produtos/ingredientes locais fazem parte do estilo de vida local. Não se trata apenas de consumir boa comida, mas de consumir uma cultura preciosa. Por estes motivos, e se todos trabalharmos para que o Minho seja um destino dinâmico, reconhecer e valorizar a nossa riqueza gastronómica – desde o produto, passando pelo cozinheiro e profissionais da restauração, o consumidor (turista) terá muitos motivos para continuar a visitar o Minho.
Como vê o papel da Confraria dos Gastrónomos do Minho nessa dinamização?
Com já referi anteriormente, a Confraria servirá de facilitadora de ações a desenvolver em parceria com outras entidades e instituições para defender e promover os interesses do património gastronómico minhoto. Por exemplo, promover a investigação no receituário, na arte e técnica da cozinha tradicional. Estamos a desenvolver metodologias para realizar levantamentos nas aldeias. É minha intenção começar pela minha terra – Lindoso. Os contributos adquiridos poderão ser aproveitados pelos Municípios para a elaboração de sua própria carta gastronómica. Usar essa ferramenta para promover a gastronomia local na alimentação escolar, servir de apoio nos cursos de cozinha e aos restaurantes na elaboração dos cardápios/menus. Uma verdadeira iniciativa de bottom-up!
Hoje em dia, é cada vez mais difícil atrair profissionais e captar talento para a restauração. Na sua opinião, esta realidade deve-se a que factores?
Temos um número significativo de escolas profissionais a fazer um excelente trabalho a formar jovens para exercer profissões na área da restauração – na cozinha, sala e bar. Estes cursos colocam grande ênfase na componente prática, eu diria de 70/80 por cento. Mas, é preciso criar condições para que depois de concluir a formação os jovens optem por trabalhar na respetiva área e que permaneçam cá na região. A pergunta é, como podemos melhorar as condições, particularmente a financeira? Não há alternativa se não aumentarmos os preços das refeições, o que se torna complicado para os restaurantes e para a sua clientela.
O que poderá ser feito para alterar este padrão? Passa, por exemplo, pela formação, pelas escolas e universidades na introdução de novos cursos?
Além da oferta formativa nas Escolas Profissionais, têm surgido cursos técnicos superiores profissionais (CTESP) em instituições de ensino superior. Um desses cursos é o Curso Técnico Superior Profissional em Turismo de Gastronomia e Vinhos, do IPVC, a funcionar nos Municípios de Monção e Melgaço. A Confraria é parceira neste curso. O IPVC tem outro curso aprovado, de licenciatura em Gastronomia e Artes Culinárias, em colaboração com o Turismo de Portugal e em que a Confraria é parceira. É um curso que faz muita falta cá na região. Estão a abrir novos restaurantes com diferentes modelos de negócio, em conformidade com as novas realidades da sociedade contemporânea, novos hotéis das categorias mais elevadas (4 e 5 estrelas) para atrair segmentos de mercado com melhor poder de compra, mas também maior exigência em termos culinários e de serviços, quintas e produtores de vinho a diversificar para a área do enoturismo. Ora, torna difícil promover os vinhos para turistas nas quintas se produtos alimentares locais e a confeção de pratos regionais não fizerem parte dessas experiências. Mas, há muita falta de mão-de-obra qualificada para receber estes “novos turistas”. O que distingue este curso superior de outros na área da cozinha/restauração é a sua fundação em quatro pilares: culinária, vinhos, cultura e turismo. É esperado que estes quatro pilares permitirão formar profissionais para multitasking, ou seja no desenvolvimento da sua atividade profissional tanto pode estar a confecionar pratos na cozinha, prestar serviço de Escanção (Sommelier), como receber visitantes para gastronomia e vinhos contextualizados na nossa cultura, cuidar da vinha, produzir matéria-prima, etc. A Confraria teve um papel muito importante na criação deste curso e espera ter um papel igualmente importante quando em funcionamento, dando os seus contributos, quando solicitados. A expectativa é que o curso inicie no próximo ano letivo. Portanto, as condições estão a ser criadas na região para dar resposta às necessidades identificadas nos referidos setores.
Quais são os maiores desafios que se colocam ao sector nos próximos tempos?
Identifico dois grandes objetivos: cativar mão-de-obra qualificada para satisfazer as necessidades de um cliente cada vez mais exigente, em termos de serviço, qualidade alimentar e autenticidade culinária; e incentivar, promover e apoiar a preservação e recuperação das matérias-primas destinadas à cozinha regional.
Qual é a sua opinião em relação aos preços praticados, de uma forma geral, nos restaurantes minhotos?
Hoje, os clientes estão bem informados do que comem, quanto custa e usam essa informação para estabelecer um valor que estão dispostos a pagar. Geralmente, os que dão valor à matéria-prima de origem local, os preços são razoáveis, esses restaurantes veem esses clientes voltar e é hábito ter «casa cheia». Por outro lado, restaurantes que oferecem produtos já com alguma influência de ingredientes industrializados, os clientes tendem a não voltar indicando a sua insatisfação pelo produto. No que diz respeito aos restaurantes que dependem das diárias, a margem de lucro é cada vez mais diminuta, o que influencia o tipo de prato que oferece e de ingredientes. Com a subida dos preços devido à inflação, estes restaurantes não só têm de ter muita atenção ao que compram, mas inevitavelmente terão de aumentar os preços das diárias, o que poderá levar à perda de clientes. Os restaurantes terão de adaptar-se. Não é e, certamente, não será fácil para os pequenos restaurantes, muitos de âmbito familiar.
Hoje em dia, há uma crescente preocupação com a sustentabilidade. Como é que olham para essa vertente tendo em vista a função que desempenham na Confraria?
Fala-se muito em sustentabilidade e a necessidade de tornar a gastronomia sustentável. É uma questão importante, não só pela importância da gastronomia na qualidade de vida das pessoas, mas também porque é um elemento vital para a atração de visitantes. Precisamos de abordar a sustentabilidade da gastronomia na perspetiva de defender a cozinha regional e a produção de alimentos dos efeitos da globalização. Pequenos produtores precisam ser protegidos de grandes empresas comerciais de alimentos. Mas a sustentabilidade da gastronomia precisa considerar mais do que simplesmente proteção ou conservação, e precisa ter um foco mais amplo do que os produtores locais. Temos que trabalhar com os cozinheiros e os profissionais da restauração para dar preferência aos ingredientes e produtos locais, o tal “quilómetro 0”.
«O turista procura cada vez mais produtos locais e querem acreditar que o restaurante está a usar peixe vindo da lota ou legumes da horta. Querem comida da quinta para a mesa»
Estamos cada vez mais cientes para o consumo de comida mais saudável. Como é que vê essa disposição e como é que a gastronomia tradicional pode ser uma alternativa para esse comportamento?
Vou-lhe dar o exemplo de quem nos visita. Cada vez mais, o turista procura produtos locais; querem acreditar que o restaurante está a usar peixe vindo da lota/pescadores locais, os legumes da horta, etc. Os turistas estão interessados em comer local, comer fresco, comer biológico, por exemplo, “da quinta para a mesa”. É evidente o entusiasmo pelos produtos locais e ingredientes de alta qualidade, pela harmonização de sabores e um estilo mais moderno de cozinha e pela apresentação dos alimentos (uma área em que ainda podemos ser mais criativos). Estou convencido de que o caminho a seguir passa pelo cozinheiros procurarem inspiração na humilde cozinha regional tradicional. Pratos enraizados na tradição, mas possivelmente não reproduzidos exatamente da mesma forma que antigamente (inovação, mas com limites!). Neste contexto, o futuro será sorridente para o Minho!
Quais são os seus pratos favoritos?
Sou grande apreciador de toda a gastronomia minhota. Mas confesso que tenho um «fraquinho» por um bom Galo de Cabidela. Não com qualquer galo, mas sim com galo do campo, alimentados ao ar livre. Faço esta descrição porque este tipo de galo está em extinção. Já se torna difícil para os restaurantes ter acesso a este tipo de galos.
O que é que não pode faltar na sua mesa?
Bons amigos, boa companhia!
E o que é que não consegue comer de maneira nenhuma?
Pergunta muito difícil. Não me estou a lembrar de nada que não goste. Fui ensinado desde muito cedo a apreciar os produtos da horta, da capoeira, e da serra (sou serrano!), o bacalhau e, com menos frequência, os produtos frescos vindos do rio e do mar.
Para terminar, como vê o futuro das confrarias ligadas à gastronomia?
Verifica-se um aumento de Confrarias no Minho e em todo o país. Algumas foram criadas para promover um prato tradicional específico. Outras, para promover uma inteira região, como é o caso da Confraria dos Gastrónomos do Minho. Encontramo-nos nos Capítulos e outras atividades promovidas pelas mesmas. É sempre uma grande alegria ver tantas pessoas, tantos minhotos, a contribuir para defender e divulgar a autenticidade da verdadeira gastronomia minhota, onde incluímos os nossos vinhos verdes.