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Sorrisos pintados de esperança

 

Serviço de Pediatria do Hospital de Braga, terça-feira, 14h10 no relógio.

O silêncio no corredor é interrompido por um baixo e pequeno burburinho. Lá ao fundo, vestidos de bata branca, rostos pintados e de nariz vermelho, surgem, pausadamente, os Doutores Palhaços. São dois, como sempre, e vêm com um sorriso do tamanho do mundo.

O Dr. Toni destaca-se pelos seus sapatos de berloque, laço amarelo e calça vincada. Com a guitarra assume os acordes musicais que a Dr.ª Francesinha acompanha com a sua colorida maraca, que serve também de microfone improvisado.

Sorridentes, pedem permissão para entrar, quarto a quarto. Apesar do contexto vulnerável, com crianças e jovens hospitalizados, naquele breve instante, esquecem-se dias de dor e sofrimento. O semblante triste dá lugar ao alento, à gargalhada fácil e à boa disposição.

Ali, naquele momento, a sensação de transformar um ambiente duro num lugar leve assume-se como uma missão transformadora. O brilho nos olhos é visível em todos os que assistem. Crianças, pais e profissionais de saúde. A atenção é afetuosa. Repentinamente, começa um diálogo divertido, aberto, livre. E o quarto enche-se de magia, admiração e sorrisos.

Um dos mais entusiastas era Ivo Dias, jovem de 17 anos, hospitalizado há dois meses, devido a um acidente com um trator que lhe custou a fratura de uma perna. Natural da Póvoa de Lanhoso, confessa que a presença dos Doutores Palhaços é uma preciosa ajuda para ultrapassar a dor do internamento. «Gosto muito quando passam por cá. É um espectáculo e divirto-me muito. Ajudam-me a ultrapassar esta fase menos boa», diz. As saudades de casa e de andar a cavalo, revela, «são muitas». «O meu patrão tem uma quinta e já há muito que não monto a cavalo. Faz-me muita falta e tenho imensas saudades», finaliza.

Na cama em frente ao Ivo, está Filipe Azevedo, de 12 anos. Natural de Braga, está recuperar de uma rotura de ligamentos, e não vê a hora de ir para casa. No entanto, os Doutores Palhaços levam-lhe a alegria necessária para ultrapassar esta fase menos boa. «São muito simpáticos, divertidos e animam-nos», refere.

Com um estado anímico mais positivo, Ivo e Filipe despedem-se entusiasticamente dos seus amigos e os Doutores Palhaços prosseguem a sua missão de transformar a realidade de outras crianças. E de quarto em quarto, continuam a “prescrever alegria” e conforto aos pequenos pacientes.

Margarida e Luís vestem com orgulho a pele de Doutores Palhaços

Foi durante a sua formação como atriz, que a portuense Margarida Fernandes, de 47 anos, teve o seu primeiro contacto com a técnica de palhaço. Algum tempo depois candidatou-se a um casting da Operação Nariz Vermelho (ONV) e passou a integrar a equipa artística dos Doutores Palhaços.

Já Luís Almeida, com 37 anos, começou a fazer teatro, influenciado por um amigo experiente na área, num grupo amador em Vila do Conde, de onde é natural. «Esta vertente sempre me fascinou. Comecei a fazer algumas apresentações de cabarets e números de palhaço e, desde então, nunca mais parei. Candidatei-me à ONV e aqui estou», revela.

Margarida lembra a primeira vez que vestiu esta “pele”. «A memória remete sobretudo para as emoções do momento. Tudo se passou no IPO do Porto e foi absolutamente extraordinário perceber o poder transformador dos Doutores Palhaços e a genuína disponibilidade das crianças para nos receberem mesmo em circunstâncias de vulnerabilidade. Foi um misto de adrenalina, surpresa e estupefacção», regista.

O nervosismo, em contrapartida, tomou conta de Luís no dia da sua estreia. «Foi no Centro Hospitalar de Gaia-Espinho e estava nervoso pois estava a ser avaliado pelo diretor artístico da ONV. Os primeiros minutos foram de ansiedade, mas depois, muito organicamente, fui incorporando a “pele” do Doutor Palhaço. Sentia-me como peixe na água», refere.

Ambos concordam que, para alguém se tornar Doutor Palhaço precisa, em primeiro lugar, de ser artista. «Seja a formação de base em Teatro, Circo, Música ou Dança, é preciso ter experiência na linguagem Clown», assinalam, reforçando a ideia que a formação da ONV dura ao longo de toda a permanência na Associação, permitindo ao artista «aprender novas técnicas e adaptar-se às mudanças que surgem no contexto do trabalho no hospital».

Para além de adorarem o trabalho que fazem, ambos aprovam as personagens que adotaram. «A Doutora Francesinha sou eu mesma, mas no estado extraquotidiano, excecional. É a minha dimensão mais extravagante, com traços da minha identidade mais disfarçados no dia-a-dia, mais brincada. O figurino da Doutora Francesinha possui tudo aquilo com que eu adorava brincar em criança: tacões, plumas garridas, pérolas e dourados. Nesse sentido, ela é muito libertadora na sua aristocracia, cores e brincadeiras», assinala Margarida.

Para Luís Almeida, o Doutor Toni «é uma extensão» de si próprio, «mais exagerada, como se de uma caricatura se tratasse». Revela que o nome “Toni” e algumas características são inspirados no Toni Silva, o “boneco” que o Herman José fazia no “Tal Canal”. «Inspirei-me nesta personagem quando apresentava cabarets de novo circo, por isso levá-lo depois para o hospital foi muito natural para mim», justifica.

Função exigente mas muito recompensadora

Ambos concordam que a função de Doutor Palhaço «é muito exigente». No entanto, a recompensa suplanta qualquer tipo de obstáculo. «Puxa muito pela nossa capacidade de adaptação rápida a cenários diversos e desafiantes e que nos leva a expandir a nossa criatividade e a desenvolver novas competências. Mas, no fim, compensa a 100%, porque se conseguirmos mudar o dia de apenas uma criança, já é um dia ganho», referem, com um evidente brilho nos olhos.

Atuar em dupla, segundo Luís Almeida, desenvolvem-se muito mais as respetivas capacidades, como «a escuta ativa e a adaptação rápida à proposta que o parceiro oferece a cada momento e para a qual é necessário ter sempre uma resposta ágil e imediata». Margarida destaca que as duplas «variam na dinâmica que os elementos têm entre si: umas mais musicais, outras em que os artistas apostam mais nas dinâmicas da fala e do teatro, que normalmente resultam melhor com crianças mais velhas e adolescentes».

Muito improviso, estudo e treino

O improviso, o estudo e o treino em conjunto são também garantias de sucesso. «É essencial ensaiarmos todos juntos novas músicas, coreografias, jogos e técnicas que vamos aprendendo e passando uns aos outros», justifica Luís Almeida, ideia que Margarida Fernandes reforça com a estreita coordenação entre os envolvidos. «Antes de iniciarmos a visita, temos um momento de preparação, ao qual chamamos “transmissão”, entre a dupla de artistas e os profissionais hospitalares responsáveis pelo serviço nesse dia, onde eles partilham connosco informação clínica sobre cada criança que vamos encontrar, para que possamos antecipar o cenário com que nos vamos deparar em cada quarto, de forma a adequarmos a nossa interacção», conta.

Entre os temas a abordar, tudo depende dos desejos e propostas das próprias crianças. «Tentamos ir ao seu encontro, e a música, por exemplo, é uma ponte artística que os Doutores Palhaços usam. Após percecionar a atmosfera que rodeia a criança e a sua disponibilidade naquele instante, vamos propondo um momento de encontro no qual elas podem participar ou simplesmente observar», diz.

A principal preocupação é construir uma relação de confiança e brincadeira. «Se uma criança não está disponível para interagir connosco em determinado momento, tentamos entender se, através de algum jogo, música ou brincadeira entre nós conseguimos, aos poucos, que ela queira juntar-se. Mas quando isso não é mesmo possível, passamos ao quarto seguinte e tentamos num outro dia conquistar aquela criança, porque respeitamos sempre os “sins” e os “nãos” que recebemos», explica Margarida.

Articular a atuação enquanto palhaços com o próprio ambiente e exigência hospitalar é também uma preocupação destes profissionais. «Recebemos formação muito específica sobre as dinâmicas e rotinas hospitalares. Para além disso, respeitamos sempre o ambiente no qual vamos entrar, porque um palhaço nunca deve sobrepor a sua presença à do profissional hospitalar, por exemplo. Estamos lá para ajudar a tornar o quadro hospitalar mais humano e alegre para todos e não o contrário», fundamenta Luís Almeida.

«É gratificante sentirmo-nos parte de um todo»

Para Margarida e Luís, sentirem-se parte de um todo é o lado mais gratificante deste trabalho. «Chegar a mais um dia de visita e ouvir que fizemos falta no dia em que não pudemos estar lá. Receber um desenho que uma criança fez especialmente para nós. Quando nos pedem para não irmos embora ou nos perguntam quando voltaremos. Mas o melhor de tudo, e que podemos ver em tempo real, é quando, por instantes, podemos observar as crianças, os seus pais, irmãos e profissionais do hospital ligados por uma música ou brincadeira só porque nós estávamos ali a provocá-los a aceitarem, mesmo dentro de um hospital, a experiência da graça e a beleza da alegria. O mesmo acontece com os profissionais de saúde, com os quais temos uma relação de verdadeira parceria. Animamos os dias deles, sempre à procura de lhes arrancarmos um sorriso», referem.

Há, no entanto, cenários difíceis que a própria formação e treino ajudam a ultrapassar. Lidar com crianças em contextos duros e vulneráveis é também uma forma de criarem uma relação transformadora nas suas vidas, ou seja, transformar um ambiente pesado num lugar leve e animado. «Uma criança continua a ser criança, mesmo estando doente, continua a querer brincar, estudar, questionar as coisas que despertam curiosidade e ser protagonista da sua própria história, e é esse universo que procuramos conquistar para vivenciar a alegria com ela. Estamos aqui para transformar o ambiente do hospital, para o tornar mais alegre, mais respeitoso e para que o momento de hospitalização da criança ou adolescente seja uma experiência mais positiva. Estamos completamente integrados e em sintonia com as equipas de profissionais do hospital, colaboramos com médicos, enfermeiros, educadores, auxiliares e outros profissionais na luta comum pela humanização dos cuidados de saúde pediátricos», concluem Margarida e Luís.

Atuação dos Doutores Palhaços com benefícios na saúde dos pacientes

No Serviço de Pediatria do Hospital de Braga, o entusiasmo é evidente nos dias em que os Doutores Palhaços marcam presença. Segundo a directora da unidade, Almerinda Barroso Pereira, «estes dias são sempre muito agradáveis, diferentes e mais felizes». «Há muita animação e interacção com as crianças, com os pais e profissionais», assinala, elogiando a «excelência» do trabalho que os Doutores Palhaços realizam no Hospital de Braga, com benefícios nos próprios tratamentos. «É um dia mais leve onde as crianças estão mais descontraídas e isso favorece o tratamento. Isto é comprovado por várias teses de doutoramento e mestrado que estudaram os efeitos dos cuidados dos Drs. Palhaços nas crianças internadas e comprovaram-se dados muito positivos. Notamos as crianças mais calmas, descontraídas, alegres, bem-dispostas, tolerantes e mais colaborantes. Inclusive temos até casos de crianças com doenças crónicas, que estão várias vezes internadas e que pedem para não ter alta à segunda-feira, porque sabem que no dia seguinte os Drs. Palhaços vão cá estar», revela.

Os Doutores Palhaços já fazem parte da família do Hospital de Braga

Por sua vez, o Presidente do Conselho de Administração do Hospital de Braga, João Porfírio Oliveira, reforçou o papel da Operação Nariz Vermelho e o trabalho desenvolvido pelos Doutores Palhaços e a «importância que têm na humanização dos cuidados de saúde prestados aos pequenos utentes». «Os Drs. Palhaços trazem sempre uma alegria contagiante para as nossas crianças, mas também aos pais, restantes utentes e profissionais de saúde. O seu trabalho faz com que consigam esquecer um pouco as dificuldades de estarem hospitalizadas. A sua atuação é, sem dúvida, uma mais-valia extrema para o bem-estar de todos os envolvidos. Acreditamos que a brincadeira e o sorriso deixam espontaneamente as crianças mais motivadas para quererem melhorar os seus estados de saúde», realça.

Para o responsável, os profissionais de saúde devem inclusive ser, nas suas funções, mais “palhaços”. «Penso muito nisso e tenho vontade de ser cada dia mais palhaço, porque a alegria é contagiante. Continuar a ser brincalhão, continuar a sorrir e continuar a fazer os outros sentirem-se bem, acaba por ser uma motivação e um estado de bem-estar para quem está a desempenhar as suas funções. De forma contrária, se passarmos um estado de tristeza, os utentes também vão ficar tristes», justifica.

Para João Porfírio Oliveira, o balanço do trabalho efectuado pelos Doutores Palhaços no Hospital de Braga «é muito positivo». «Quando não estão, e isso notou-se durante a pandemia, apesar de terem atuado através de canais digitais, sente-se uma grande diferença no ambiente que se vive na instituição. Não só no internamento de Pediatria, mas também quando se deslocam a outros serviços ou quando vão almoçar. Nestes dias há sempre muita animação e alegria. Os Doutores Palhaços já fazem parte do hospital e desta família e são sempre muito bem-vindos», termina.

Esta é mais uma bonita história de amor, amizade, bondade e esperança. É assim todas as terças, no Hospital de Braga!

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