«Tem sido um caminho de dureza, insistente e persistente mas com muito espirito de entrega, missão, resiliência, resistência, abnegação, confiança na ciência, “amor ao próximo” e Fé em Deus»
Céu Ameixinha, coordenadora do Centro de Vacinação de Braga, em entrevista à Revista Minha, faz um balanço de todo o processo de vacinação até ao momento, certifica o trabalho desenvolvido ao longo de vários meses e aborda o futuro, com ou sem pandemia, numa conversa aberta, franca e repleta de emoção e curiosidades.
Como tem decorrido o processo de vacinação em Braga até ao momento?
Com muito orgulho e satisfação digo que correu muito bem, super bem mesmo, permitindo-nos sempre antecipar etapas e termos grande número da população imunizada antes do esperado. Foi um caminho de dureza, insistente e persistente mas com muito espirito de entrega, missão, resiliência, resistência, abnegação, confiança na ciência e “amor ao próximo” e Fé em Deus, em “doses altíssimas”, pois era necessário colocarmo-nos ainda mais no “ser do outro”.
Indo ao início do processo de vacinação, como é que foi formar uma equipa em velocidade relâmpago?
Tudo começou a 28 de Dezembro de 2020, data em que o Sr. Diretor executivo do ACES Braga, Dr. Domingos Sousa me designa para iniciar o Processo de Vacinação. Sem sabermos mais nada, o dia da primeira entrega das vacinas foi a 29 de dezembro de 2020, a primeira vacina que inoculei na USP de Braga, em Gualtar, foi a 30 de dezembro e a partir daí não paramos mais, aumentávamos diariamente o numero de inoculações, até que o espaço inicial torna-se pequeno e a equipa foi sendo constituída e alargada com os profissionais que pertenciam ao ACES de Braga. O espaço ia ficando reduzido e da Unidade de Saúde Pública mudamos para umas instalações do ACES que rapidamente se tornaram demasiado pequenas para a vacinação em massa, uma vez que já tínhamos iniciado a vacinação nos lares e aqui também fomos dos primeiros a iniciar esta vacinação. Depois, fomos para o Altice, aumentamos a equipa e logo percebemos que era necessário e vantajoso ter uma equipa residente e só afeta à vacinação para além de todos os profissionais das Unidades Funcionais que iam de acordo com as disponibilidades de cada um. Aí foram contratados enfermeiros, médicos, assistentes operacionais para integrar essa equipa (núcleo duro)… porque era mais fácil e ágil delinear estratégias, assegurar e manter a continuidade do trabalho e do objetivo de vacinar o maior numero possível de pessoas no mais curto espaço de tempo para nos livramos da pandemia o mais precocemente possível.
«Ao longo do tempo, fomos promovendo várias atividades e dinâmicas para motivar a equipa de profissionais»
Como é que motivou todos os profissionais envolvidos no processo de vacinação ao longo deste tempo?
Pela minha motivação pessoal, personalidade e pelo facto de ser especialista em Enfermagem Comunitária e de Saúde Pública, percebi e abarquei que a vacinação em qualquer pandemia, epidemia ou surto é o que nos faz vencer ou reduzir as consequências maiores e no mais curto espaço de tempo. E esse foi, é e terá de ser sempre o nosso foco de atuação. A história em Portugal e no mundo assim o relata e comprova com a estatística e casuística. Desde o primeiro instante intuí e senti que este seria um processo arrojado, duro, de entrega e que era necessário que ocorresse no mais curto espaço de tempo e que não podíamos desanimar. Assim e, desde sempre, tive a noção de que a motivação seria o motor para envolver todos no mesmo objetivo: vacinar, vacinar e vacinar… e, naturalmente, desde o primeiro dia que a confiança, segurança e comunicação clara e concisa em grupo próprio do WhatsApp entre outras ações, como tirar uma foto de grupo com um aplauso para todos foi a chave da união, coesão, solidariedade e dos resultados alcançados em beneficio de todos. Depois, tudo foi surgindo naturalmente, com tik toks, redes sociais, músicas, coreografias, placards de fotografias, diário de bordo, sessão de Risoterpia, musicoterapia, frases motivacionais, pensamentos e poesia nas boxes de vacinação e locais de trabalho, placard de fotos, livros de elogios, confessionário, box13, estar sempre atenta às fisionomias, em especial aos olhares e emoções de cada um, assinalar de dias importantes, cantar os parabéns aos aniversariantes, mimos gastronómicos, entre muitas outras atividades e dinâmicas que despertassem para que as imensas horas de trabalho fossem mais leves e gratificantes. Todas estas ações, estou convicta, serão boas memórias desta pandemia. Um dos segredos da motivação passou também pelo facto de sempre que possível afetar os profissionais de saúde ao desempenho das funções para as quais sentiam mais apetência natural e motivacional.
O que sentiu na fase em que a vacinação se começou a alargar?
Senti sempre uma imensa vontade e responsabilidade de fazer mais e melhor, desafiando os meus próprios limites. Tive a sensação de que este era o caminho para que a pandemia chegasse ao fim. E nunca duvidei da vacina, qualquer que fosse a marca.
No pico, quantas pessoas vacinaram por dia?
Batemos vários records, diariamente vacinamos cerca de 2200 pessoas, mas houve um dia em que vacinamos 3240 utentes. E no dia em que não fizéssemos 2000 vacinas, era para nós considerado um dia fraco ou menos bom.
E o que dizia às pessoas?
Sempre as tranquilizei, dizendo que a vacina era o melhor que estavam a fazer neste tempo de pandemia por si próprias, pelos seus entes queridos e pela Humanidade e, só assim, todos podíamos vencer este vírus e poderíamos voltar ao que tanto amávamos.
Sentiu desconfiança e receio de quem chegava para ser vacinado?
No início, muitas pessoas tinham dúvidas, medos e receios que facilmente ajudávamos a ultrapassar e era normal que tivessem esses sentimentos. Chegamos a estar com algumas pessoas uma, duas horas para que tomassem a decisão de se vacinar, até porque algumas pessoas confessaram que toda a vida tiveram medo de ser vacinadas mesmo sabendo que era o melhor. Tentamos sempre criar um bom clima, de confiança, segurança e tranquilidade para todos.
E postura negacionista?
Sim, apareceram alguns, muito poucos que acompanhavam familiares e amigos e iam manifestando as suas ideias mas posso dizer-lhes que mais tarde, vi alguns serem vacinados e houve um que me disse, “não é por mim que o venho fazer”… mas fez.
Alguém entrou para ser vacinado e desistiu?
Que eu tenha conhecimento não entrou ninguém para ser vacinado que tenha desistido, sendo que alguns tivemos de os vacinar no exterior devido às patologias e fobias que possuíam. É excelente podermos adequar medidas que facilitem a vacinação no meio que se torna mais favorável e agradável ao utente. Muitos quiseram fazer a vacina deitados e assim foi, outros quiseram fazer no carro e foi tranquilo.
Essa instabilidade emocional comprometeu em determinado momento o ritmo do vosso trabalho?
Não comprometeu porque demos sempre resposta aos objetivos. Claro que causou alteração em termos de tempo de espera e no prolongamento de mais horas de trabalho mas toda a equipa estava motivada e não sentiu isso como dificuldade. O nosso foco era vacinar.
O que explica que algumas pessoas não queiram vacinar-se contra a covid-19?
Como em tudo na vida haverá sempre os que têm mais necessidade de tempo para assimilar e abarcar novas mudanças e desafios e até entender ou perceber o porquê das coisas, neste caso da vacinação. Mas é bom sentir e constatar que ainda temos todos os dias, 20 a 30 pessoas que decidem iniciar a vacinação Covid 19. E não por atingirem a idade para se vacinar mas porque de forma livre e conscientemente assim decidiram e optaram.
Qual foi a altura em que se sentiu mais impotente ou com maiores dificuldades e porquê?
Isso aconteceu, sem dúvida, quando, em outubro, mudamos das instalações do Altice, de cima para baixo para a galeria técnica… foi um espaço muito exíguo, claustrofóbico onde fizemos o nosso melhor mas as condições não eram adequadas nem para os profissionais nem para a população e porque fomos, mais uma vez, surpreendidos pela evolução da pandemia. Iriamos só fazer a vacina da gripe mas tivemos de iniciar a terceira dose da vacina Covid… foi complicado, arrasante gerir as emoções dos profissionais, da população e de alguns “mal dizentes crónicos”. Quero deixar expresso que desde o primeiro instante todos os envolvidos neste processo fizeram um esforço sobre-humano para que, o mais precocemente, se voltasse a ter as condições adequadas, merecidas e a que estávamos habituados. Infelizmente, demorou mais do que desejávamos. E aqui fica o alerta para que haja sempre esta preocupação de ter um espaço amplo, digno e dotado do básico para que eventuais necessidades futuras sejam rapidamente potencializadas. Aliás, defendo mesmo que todos os Municípios deveriam ter um Centro de Vacinação bem ativo. Este foi um desafio desta pandemia, mas já se tinha sentido esta necessidade em 2009 aquando da pandemia do H1N1, e caiu no esquecimento… oxalá agora, quem de direito, tenha aprendido e implemente medidas visionárias e arrojadas.
«Tentamos sempre criar um bom clima, de confiança, segurança e tranquilidade para todos os utentes»
E qual foi o dia mais feliz ao longo de todo o processo?
Sou positiva por natureza e vejo sempre o lado belo das coisas e das pessoas, por isso, não posso só destacar um dia mas vários… o dia da primeira vacina que administrei, o dia dos records de vacinados, o dia da chegada da primeira vacina (noite mal dormida), o dia da Homenagem que a Escola Superior de Enfermagem de Braga me fez e a toda a equipa, o dia da visita e das palavras do então Sr. Vice-Almirante – Gouveia e Melo, Coordenador da Task Force e que muito admiro. Foram muitos dias e emoções, com vários momentos únicos com pessoas que vacinei e conversei. Um trajeto que dá para escrever um livro…
A entrada do anterior coordenador da Task Force do Plano de Vacinação, Gouveia e Melo foi importante para o sucesso deste sistema?
Para o bem e para o mal, o nome, a identidade, a personalidade, o arrojo de quem está à frente do que quer que seja faz sempre toda a diferença num trabalho de equipa e aqui, sem dúvida, fez toda a diferença e sucesso. O Almirante Gouveia e Melo todas as semanas fazia um webinar interativo entre as Administrações Regionais de Saúde do País e onde também estavam presentes as coordenações dos Centros de Vacinação. O Sr. Almirante era pontual, claro, preciso e conciso nas orientações e tinha um sentido de humor fantástico. Foi um visionário e estratega fabuloso e nunca deixou de dizer o que pensava, ou sentia, doesse a quem doesse e com uma classe e subtileza fantásticas. É ainda possuidor de uma generosidade e simpatia humanas invejáveis. Sou muito fã deste senhor…
Nestes últimos dois anos, quais foram os principais desafios que enfrentou?
Sem qualquer dúvida, os principais e maiores desafios foram a minha resistência, resiliência, entrega, desapego e abnegação. Foram muitos dias e muitas horas sem olhar para o relógio, sem comer e descansar, longe do que mais amo e gosto. Não fui obrigada por nada nem por ninguém, somente pelo meu dever e amor à causa e ter podido abarcar este desafio como uma missão de vida pessoal e profissional.
Considera que os profissionais de saúde foram confrontados com demasiadas exigências?
Sim, considero que fomos confrontados com muitas exigências fora do que estávamos habituados e longe do padronizado. Fazer mais e melhor muitas vezes com condições aquém do esperado, lares, fabricas, tudo fechado… Reinventamo-nos e ficamos mais preparados para novos desafios. Fomos testados ao máximo na paciência, resistência e resiliência. Espero que todos consigamos manter esse Know-how, esse aporte para o futuro que se avizinha.
Foram verdadeiros heróis e heroínas, em termos de resiliência, esforço e capacidade de resposta. Acha que essa força e dedicação já foi devidamente reconhecida pelas entidades governativas?
O melhor reconhecimento das entidades governativas era que, agora e mais do que nunca, possam proporcionar/implementar uma carreira digna e justa da profissão de cada um em que incluísse o risco, a penosidade, uma avaliação de desempenho adequada e sem limite de quotas.
Foi infetada com Covid-19?
Sim, um mês depois de ter feito a terceira dose, eu e mais 6 profissionais da equipa. Foi a OMICRON. O nosso sistema imunitário sempre tem de reagir mais acelerado e devido a estarmos também mais expostos, tocou-nos.
Como se sentiu?
Tive dois dias com cefaleias e dores musculares que controlei bem com analgésico e dou-me por feliz por só ter tido Covid depois de estar vacinada… tendo eu duas patologias crónicas posso dizer que correu muito bem.
Alguma vez sentiu medo de ser infetada?
Sim, no inicio da pandemia, eu e a Autoridade de Saúde – Dr. Mário Freitas fomos dos primeiros a ir às fábricas e locais onde estava focalizado e a propagação da SARS-COV2. Apesar de todas as precauções, sabíamos que estávamos mais sujeitos a ficar doentes e até porque, desde o inicio, sabíamos muito pouco ou nada deste vírus e de como iria evoluir.
Com a missão que abraçou, que exigiu de si enorme dedicação, como ficou a rotina familiar?
A rotina familiar teve de ser toda alterada. Eu era “quase hospede”, entrava para tomar banho, jantar e dormir, sempre só com hora de sair de casa e sem hora para regressar. Agilizávamos tudo por chamada ou vídeo chamada. Tenho a família mais fantástica do mundo, marido, filha, pais, irmãs, cunhados, sobrinha, sobrinhos e muitos amigos que estiveram sempre presentes na minha família. Devo-lhes uma gratidão enorme!
Qual é o grande desafio que se coloca no futuro a todos os profissionais de saúde que estiveram e continuam a estar envolvidos neste processo?
Nenhum profissional sairá deste processo como entrou. Atrevo-me mesmo a dizer que continuará sempre a ser/ ter uma marca inapagável nas vidas pessoais e profissionais de todos. A experiência aqui adquirida será única e fará escola para a vida mesmo para os que já pertenciam ao quadro. Em termos políticos será um erro crasso e digo mesmo “pecado” se o SNS não contratar para o quadro os profissionais novos que adquiriram tanta experiência em tão curto espaço de tempo. Ficaria mesmo muito feliz que todos eles integrassem os Cuidados de Saúde Primários, em especial em Braga onde, tenho a certeza, farão uma grande diferença no desempenho diário do nosso ACES.
«Desde o primeiro instante, todos os envolvidos neste processo fizeram um esforço sobre-humano para que, o mais precocemente, se voltasse a ter as condições adequadas, merecidas e a que estávamos habituados»
No âmbito da atividade profissional que desenvolve, que aprendizagens retira desta experiência?
A melhor e maior aprendizagem que retiro desta experiência é que quando as pessoas/profissionais querem, a realidade acontece e de forma positiva. A coesão, união, motivação e espirito de grupo movem montanhas e os resultados acontecem. Sou uma acérrima defensora da Liderança translacional e transformacional e neste Processo de Vacinação tive a excelente oportunidade de a poder desenvolver e implementar como uma realidade diária. Lidera-se pelo exemplo, motiva-se com a equipa, está-se lá, fomenta-se a autonomia com responsabilidade e espirito de equipa, e cada vez mais é urgente o profissional certo no local certo.
O que mudou na relação com os doentes?
Ainda não sei bem o que mudou mas considero que a proximidade com as pessoas e com a necessidade de satisfação dos cuidados de saúde foi uma realidade constante que não podemos nem devemos perder. Devemos rentabilizar esta proximidade utilizando todos os meios possíveis para que sejam rápidos, céleres e eficazes os benefícios em saúde individual, do grupo e das comunidades. Em todo este processo também ficou vincado que a Saúde não é só da Saúde mas dos Municípios, das autarquias, forças vivas, Proteção Civil, Bombeiros, Cruz Vermelha, muitas associações e toda a imprensa escrita e falada.
Passada esta vivência, sente mais orgulho na profissão que exerce?
Sinto exatamente o mesmo orgulho, mas sem dúvida que a minha profissão ganhou mais visibilidade, ganhou mais reconhecimento da população e de muitas estruturas políticas e sociais, ganhou o lugar que lhe é devido no coração e na sociedade e aí sou eu que tenho orgulho em ter a profissão que tenho e poder desempenhar o melhor que sei e sou.
As pessoas reconhecem-na na rua?
Sim, reconhecem e eu nem tinha a noção disso.
O que é que lhe dizem?
Agradecem com muito carinho e simpatia, dão-me um abracinho e pedem-me para tirar uma foto. Oiço muitas vezes “olha a enfermeira das vacinas”. São umas e uns queridos. São muito generosos comigo e com toda a equipa. O conflito na Ucrânia veio “camuflar” a atualidade da Covid-19.
Em Portugal, quando vamos atingir a imunidade de grupo?
A Imunidade de Grupo já atingimos, mas fica comprometida com a entrada de pessoas sem vacina. Contudo, já se congregam esforços para que sejam vacinados com a COVID e com todas as vacinas do Programa Nacional de Portugal. Estamos preparados e prontos para esta etapa.
Já é possível falar da vida pós-pandemia?
Ainda é precoce, uma vez que este vírus é muito matreiro mas estamos no bom caminho e começamos a poder ter e fazer um pouco do antes. Mas com muita cautela, por favor.
«Os profissionais de saúde têm sido testados ao máximo na paciência, resistência e resiliência. Reinventamo-nos e ficamos mais preparados para novos desafios»
Como descreve estes últimos dois anos de pandemia?
Anos de prova e reinvenção de nós mesmos, da realidade, da vida e de desafios duros mas corajosos. Anos de sermos um por todos e todos por um. Anos que marcarão para sempre a nossa existência.
Que mensagem gostaria de deixar aos bracarenses?
A primeira e última mensagem que deixo é OBRIGADA… GRATIDÃO ETERNA por tudo o que foi este Processo de vacinação em Braga. A todos os que o tornaram tão belo. Obrigada ACES de Braga na pessoa do Sr. Diretor Executivo – Dr. Domingos Sousa e Conselho Clinico de Saúde. Obrigada Município de Braga e suas estruturas na pessoa do Sr. Presidente da Câmara, Dr. Ricardo Rio. Obrigada Proteção Civil de Braga, Bombeiros Sapadores, Bombeiros Voluntários e Cruz Vermelha de Braga. Obrigada a toda a imprensa escrita e falada de Braga e Nacional e redes socias. Obrigada População de Braga. Obrigada a todos os que confiaram em mim. Obrigada equipa “fabulástica” deste Centro de Vacinação, profissionais de saúde de excelência. E obrigada a todos os que me deram a honra de os vacinar.