Um craque. No pavilhão e fora dele. Assim podemos descrever Humberto Gomes, bracarense e guarda-redes internacional português de andebol. No seu dia-a-dia, é afável, tranquilo e bem-disposto. Em competição, é enérgico, exigente, competitivo e sedento de vitórias. Continua a brilhar nos grandes palcos aos 43 anos. Sim. Leu bem… Aos 43 anos! Nesta entrevista à Revista Minha, Humberto Gomes conta-nos o(s) segredo(s) da longevidade e do sucesso.
Tens 43 anos de idade e manténs-te ao alto nível, numa idade em que muitos já estão na “reforma”. Qual é o segredo para a longevidade? O segredo passa, em primeiro lugar, pela paixão que sinto pelo andebol. Por outro lado, ao longo da minha longa carreira, não tenho tido lesões graves e tenho tido, também, muito cuidado com o aspeto físico.
Tiveste que fazer muitos sacrifícios ao longo destes anos? Trabalhei muito. E tive pessoas que me ajudaram imenso neste aspeto, como o Aleksander Donner. Desde jovem que me “obrigou” a trabalhar no duro. Era tipo militar. Mas era uma forma de trabalhar que deu frutos. Viu potencial nas minhas qualidades e apostou em mim. A partir daí, tentei sempre dar o máximo e acho que tem valido a pena.
Ser atleta de alta competição é muito mais que os treinos e os 60 minutos de jogo? Sim, tive que prescindir de várias coisas no meu dia-a-dia. A minha vida académica não foi igual à de um estudante comum. Tive que ter cuidado com a vida social e com as saídas à noite, coisas normais para um jovem. Os cuidados com a alimentação e o descanso têm sido, igualmente, importantes para o meu desenvolvimento enquanto atleta.
É preciso uma grande força mental. É algo que te carateriza? É preciso estar focado nos objetivos. Em jovem eu dizia a algumas referências, na altura, que iria chegar longe no andebol. E foi com esse foco e querer que cresci e ultrapassei patamares. Olhando para trás, acho que valeu a pena fazer certos sacrifícios e estou muito orgulhoso da minha carreira.
Tens mais cuidados agora, na preparação para os jogos? Tenho tido alguns cuidados redobrados. A minha vida, neste último ano, por exemplo, mudou completamente, porque tenho conciliado o andebol com o trabalho. Tenho que acordar muito cedo e, ao final do dia, ainda tenho que ter a capacidade de treinar. É um desgaste muito grande e tenho que gerir melhor as horas de sono e descanso. Para além dos cuidados com a alimentação e exercício físico, que falei, anteriormente.
Como é que começou esta paixão pelo andebol e pelas balizas? Os meus pais eram emigrantes na Venezuela e viemos para Portugal quando eu tinha 10 anos. Tinha um primo que jogava no ABC e, um dia, uma tia levou-me a assistir a um jogo. Adorei de imediato a modalidade. Nesse mesmo ano, o desporto escolar na minha escola era o andebol. No primeiro treino, o professor perguntou quem queria ir para a baliza e ninguém se manifestou. Eu levantei a mão e fui para a baliza. Correu bem e o professor achou que eu tinha potencial para a posição. Continuei e a paixão foi crescendo a cada dia.
Iniciaste a carreira no SC Braga. E passaste por ABC, FC Gaia, São Bernardo, Belenenses e Sporting. E estavas há dez temporadas consecutivas no ABC/UMinho. Foi doloroso sair em 2020, depois de tantos anos ligado ao clube? Comecei no SC Braga com apenas 10 anos e, em juvenil, fui recrutado pelo ABC, onde fiz 10 anos de formação. Depois fiz o meu trajeto profissional nesses clubes. E, de facto, nunca me passou pela cabeça sair do ABC, depois de tantos anos consecutivos no clube. Em 2010, quando regressei, tinha como grande objetivo ser campeão no clube que sempre gostei e ajudar o ABC a ser aquilo que habituou as pessoas. A grandes feitos e a discutir todas as competições. Fomos conseguindo ao longo desta última década. Em 2015/2016, por exemplo, foi uma época inesquecível, onde ganhamos tudo o que havia para ganhar. O ano passado tomei uma decisão importante na minha vida. Começar a trabalhar na área em que me formei, em Engenharia Civil. Em Braga não tive oportunidade de explorar esta vertente e surgiu uma hipótese numa empresa da Póvoa de Varzim. Não podia desperdiçar esta oportunidade e depois aparece o convite do Póvoa AC. Juntei o útil ao agradável. Foi tudo muito rápido, porque já estava mentalizado que iria continuar e terminar no ABC, mas tive de começar a pensar no meu futuro e tomei esta opção.
Está a correr bem a experiência no Póvoa AC? Sim, tem sido fantástico e estou muito contente com este projeto. É um clube recente, que tem muitas lacunas, obviamente, mas que está a melhorar de dia para dia. Tenho a certeza que continuará a progredir, porque tem pessoas muito responsáveis e competentes, que têm feito os possíveis para ajudar os atletas, tendo em vista a concretização dos objetivos.
Que diferenças encontras na modalidade, comparando todas as fases/décadas em que jogaste? O andebol atual é muito mais rápido e físico. A percentagem de atletas com qualidade é muito grande, hoje em dia, e isso vê-se até pelo número de jogadores portugueses de elite que estão a competir ao alto nível em grandes clubes europeus. E vai continuar a crescer, porque há muitos jovens a despontar e isso é fantástico.
Licenciaste-te em Engenharia Civil. Os estudos, nomeadamente, os anos que passaste na Universidade do Minho, foram importantes no teu desenvolvimento enquanto atleta? Sem dúvida! Uma coisa ajudou a outra. Tudo o que é responsabilidade e trabalho em equipa que adquiri enquanto atleta, consigo, agora, implementar no meu trabalho. Os estudos foram, igualmente, importantes na concentração e no foco, que executei ao longo da minha carreira no andebol.
Conseguiste, inclusive, conquistar, a nível universitário, títulos nacionais, europeus e até o de vice-campeão do Mundo. Que significado tiveram para ti? Foi um período fantástico. Não só pelos títulos conquistados, mas também porque assisti ao crescimento da própria Universidade, em termos de infraestruturas, reconhecimento e valor humano. Foi um enorme orgulho pertencer a esta casa.
Concilias uma performance incrível no andebol com a profissão de Engenheiro Civil. Não deve ser fácil? A família sofre um pouco, porque não sobra muito tempo. Mas tenho total apoio da minha esposa Liliana e das minhas duas filhas, Lia e Luísa. As pequeninas, então, adoram ver o pai a jogar (sorrisos). Depois, tenho um patrão que compreende este meu lado de atleta e tem-me ajudado bastante a conciliar estas duas paixões.
Com o surgimento da pandemia, consideraste terminar a carreira? Sinceramente, não. Sinto-me muito bem fisicamente e continuo a ter um prazer enorme em treinar diariamente. Essa questão nunca se colocou!
Ao longo da tua carreira, que já vai longa, tiveste vários jogos especiais. Qual o jogo mais épico ou marcante para ti, e porquê? Foram muitos. Há um que gosto de contar aos mais novos. Tinha 17 anos, quando o Donner me colocou a jogar numa pré-eliminatória da Liga dos Campeões, na equipa sénior. O jogo correu-me lindamente e, até ele, com aquele jeito muito sério, me bateu palmas (sorrisos). Depois, a época 2015/2016, ao serviço do ABC, vai ficar eternamente na minha memória. Individualmente e coletivamente, foi a melhor temporada da minha vida. Ganhamos o campeonato, a taça, a supertaça e a EHF Challenge. Foi épico! Agora, mais recentemente, também me recordo de um jogo pela seleção de apuramento para o Europeu 2020, contra a França, em Guimarães que, também, foi espetacular.
E qual foi o pior momento? A final da Taça de Portugal com a camisola do Sporting Clube de Portugal perdida para o Xico Andebol, em 2009/2010. E, com a camisola do ABC, lembro-me também da final da EHF Challenge, em 2014/15, em que vencemos o primeiro jogo, mas acabamos por perder o segundo encontro na Roménia, por situações alheias ao jogo. Custou-me bastante!
Agora a seleção. Têm tido desempenhos grandiosos nas últimas grandes competições (Europeu e Mundial). É a melhor geração de jogadores que conheceste? Eu comecei a jogar andebol com grandes nomes da modalidade. Só para citar alguns, Paulo Morgado, Álvaro Martins, Carlos Galambas, Carlos Resende, entre muitos outros. Era uma geração fantástica. Agora também existem. São épocas distintas com um tipo de jogo também diferenciado. Hoje em dia, temos, igualmente, uma geração com muitos jovens de enorme qualidade, que tem alcançado feitos incríveis e, ainda, com grande margem de crescimento.
Já em 2021, no Mundial no Egito, foste uma das grandes figuras da seleção nacional e eleito homem do jogo diante da Noruega. Apesar do percurso positivo, ficou um amargo de boca por não conseguirem chegar mais longe na competição? Nestes dois últimos anos e nas duas últimas grandes competições (Europeu e Mundial) ficou um amargo na boca. Ficou um bocadinho aquém das nossas espectativas. Foi bom, mas ficou aquela sensação que poderia ser melhor. Era possível, por exemplo, no Europeu, se tivéssemos ganho mais um jogo, alcançar uma medalha. Teria sido grandioso, apesar de termos obtido um fantástico sexto lugar. Agora, no Mundial, um jogo menos conseguido da nossa parte destruiu uma caminhada muito positiva. Mas o andebol é assim mesmo. Vamos continuar a trabalhar para alcançarmos feitos importantes.
E quais são os teus sonhos na seleção e deste grupo de atletas? A grande meta, neste momento, é ir aos Jogos Olímpicos. Vai ser difícil, mas temos as nossas possibilidades. Mas nota-se uma grande ambição em todos os atletas em alcançar algo grandioso. Vencer um Europeu ou um Mundial é um sonho. É preciso a estrelinha da sorte, mas temos condições para isso. O nosso grupo sabe a qualidade que tem, a equipa técnica é fantástica e incutiu um espírito vencedor. Hoje em dia, entramos em qualquer pavilhão para vencer.
Quais as tuas referências na modalidade? Na minha posição, o Paulo Morgado. Enquanto atleta em si, pela qualidade, Carlos Resende, e, pelo trabalho, Carlos Galambas. São exemplos a seguir, dentro e fora de campo.
Qual o técnico que mais te marcou? Aleksander Donner.
Quando pensas terminar a carreira? Enquanto o corpo e a cabeça estiverem em forma, não pensarei nisso.
Como seria a despedida perfeita? Gostava que fosse no pavilhão Sá Leite, com o pavilhão cheio e a minha família toda presente.
Gostavas de terminar no ABC? Seria bonito terminar com a camisola do ABC, por tudo o que representa na minha carreira. Mas, não penso muito nisso. O futuro a Deus pertence!
E depois, o teu futuro passará pela modalidade ou tens outros projetos? Sem dúvida. Até porque a minha esposa matava-me, porque ficava um verdadeiro chato (risos). Agora um pouco mais a sério, acho que não tenho grande perfil para treinador principal, mas gostava de trabalhar com os jovens ou como técnico de guarda-redes.
Para terminar, qual foi a defesa da tua vida? No ano 2016, em Braga, na finalíssima contra o SL Benfica, quando faltava menos de 1 minuto para terminar a partida, estávamos a vencer por dois e fiz uma enorme defesa, aliás dupla defesa, que nos permitiu gerir o jogo até final e sermos campeões. Foi espetacular!