Conhecimento

Os homens que temem as mulheres

A verdade é que ninguém estava a contar com isto, muito menos eles. Andamos há décadas a falar de igualdade de oportunidades entre géneros, a reclamar que seres humanos tenham o mesmo ponto de partida nas organizações familiares, sociais ou laborais, sejam mulheres ou homens e independentemente dos seus credos, escolhas ou circunstâncias. Mas, o facto, é que “O Segundo Sexo” publicado, em 1949, por Simone de Beauvoir (1908-1986) continua a expor conteúdo merecedor de todo o espanto porque ninguém estava a contar com isto: que as mulheres também fossem seres sexuais, com desejos e fantasias, ou seja, com fome. 

A sociedade foi cedendo ao feminino em alguns campos, nomeadamente nos que são visíveis, nos que são mensuráveis. Podemos trabalhar e se nos esforçarmos muito até conseguiremos atingir um cargo diretivo e de poder e ganhar tanto dinheiro como um homem no desempenho de funções equiparadas. Se nos esforçarmos muito, claro, e, de preferência, se abdicarmos até um pouco de sermos femininas no sentido imagético da palavra e passarmos a assumir uma postura mais máscula, mais viril. As mulheres bem sucedidas, se também quiserem permanecer donas da sua elegância e preocupadas com a imagem, estão reservadas a áreas como a comunicação social, o entretenimento, o ensino, os cuidados de saúde, ou seja: sempre fúteis, sempre cuidadoras. 

E é por isso que ninguém estava a contar com isto. Vai-se lá entender que, além de uma carreira, elas agora questionem a obrigatoriedade da maternidade, nomeadamente daquela que não prevê paridade, e que estejam determinadas a ser livres, a ser felizes e a envolverem-se emocional e sexualmente com quem muito bem lhes apetece, sem compromisso, sem perguntas, sem justificações, sem dia seguinte. 

Ninguém estava mesmo a contar com isso, principalmente quando associado a mulheres líderes, donas da sua vida, que pagam as contas e todos os seus luxos, que de ninguém dependem e a ninguém prestam vassalagem. A sociedade patriarcal preparou-se para dar alguns direitos às mulheres, mantendo a expetativa de que elas não abdicassem de uma existência quotidiana moderadamente doméstica. Ou seja, que continuassem a cozinhar carne assada no almoço de domingo, a serem exclusivas nas listas de supermercado, nas reuniões de encarregados de educação, na assistência aos pais, sogros e a todos os parentes afastados que, no aperto, aparecem lá em casa, sendo rainhas do guarda-roupa e das ordens à governanta. 

A sociedade não as prefere nas carreiras e, se houve uma coisa que ficou clara com todo este carnaval pandémico, foi a opção, a obrigatoriedade por serem as mães, as mulheres, a ficar em casa com os filhos, a parar como parou o mundo e dedicar os dias a chegar copos de água e a fazer máquinas de roupa branca.

Nem sempre é assim. Tem havido quem escolha outro caminho, que prefira chegar a casa e encontrar apenas o gato (ou nem isso), quem opte pela circunstância de uma noite sem segunda, na maior parte dos casos, e que não tenha medo de viajar sem companhia, pôr a mesa para um e rir da energia da vida. Essas mulheres, que vivem na neblina, no vento e na bruma e adotam uma forma de estar, que seria louvável e compreensível em qualquer macho que, não obstante, fizesse da casa da mãe lavandaria e take away, podem, contudo, de vez em quando, sem querer, sem intenção, só porque sim, em liberdade, apaixonar-se. E é, na efeméride da paixão, por vezes amor sanguessuga e propício à autodestruição, que os machos, incapazes do tudo por tudo, ficam pelo nada, toldados pelo medo, pela aberração e pela incapacidade de se deixarem ir por alguém que, ainda que nos píncaros da irracionalidade afetiva, nunca será a sopeira pretendida. 

Chamemos-lhes “os homens que temem as mulheres” considerando e tendo esperança de que a emancipação feminina está por dias e que não voltará a existir nem mais uma mulher dependente do estatuto, social e financeiro, de uma vida, supostamente partilhada. Mas não é assim e cresce um abismo entre as que se emancipam e se tornam em bicho-papão e as que desistem de si e caem no conforto da conformidade de não ser feliz, dona de si, dona de nada, a alimentar-se da alegria de um esporádico ramo de flores, um jantar de velas ou, na melhor das hipóteses, uma joia que ele pediu à mãe que escolhesse. A sociedade não as prefere nas carreiras e, se houve uma coisa que ficou clara com todo este carnaval pandémico, foi a opção, a obrigatoriedade por serem as mães, as mulheres, a ficar em casa com os filhos, a parar como parou o mundo e dedicar os dias a chegar copos de água e a fazer máquinas de roupa branca. E a culpa nem sempre é deles… É delas, é nossa, que nos permitimos crescer convencidas de que somos menos, que merecemos menos, que estamos destinadas a cuidar dos outros. Não nos importamos com salários baixos, desigualdades no acesso à liderança e ao poder, não lutamos por um usufruto livre e igual do ócio dos dias e aceitamos tudo porque não queremos ser como aquela amiga que odiamos e invejamos porque é dona de si mas, coitada, está sozinha. Não colocamos em causa que essa amiga, provavelmente, não tendo, como ninguém tem, uma vida perfeita, está mais próxima de si mesma e a contribuir para que gerações vindouras de mulheres possam, pelo menos, pôr em causa a ordem patriarcal e secular vigente. 

E eles, os homens, que temem todas essas mulheres donas de si, nunca se lembram que um dia as filhas, as sobrinhas, as irmãs, as netas, poderão receber o mesmo rótulo de temíveis, assistir à fuga do macho assustado porque elas pagam a conta do jantar, sabem escolher o vinho, abrir a garrafa e nem sequer pedem ajuda para abrir os frascos. 

Helena Mendes Pereira
Curadora / Escritora

 

 

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