Um turbilhão de emoções em jeito de uma lembrança remota absorveu a minha existência. Tive que deixar o jantar a meio para começar a escrever as expressões vibrantes que tocavam na minha pele. O pano desceu rapidamente e a terra molhada trouxe de novo o outono, mas o cheiro da lembrança demorava-se no verão de 1999. A corrosiva memória deixou-me a melodia do mar presa nos ouvidos, mas é no coração que a melancolia, através do instante em que a minha amiga surge nos meus olhos, cai. Estava a apreciar o som do mar, sereno pela manhã, a pisar a areia, que respirava a breve luz acariciada pelo crepúsculo, quando eis que a minha visão estremecera e se tornou verso dentro da poesia. Papá, a minha amiga Violeta está ali. Posso ir ter com ela? Posso? Posso? – questionava a autorização ao meu pai enquanto lhe roubava a t-shirt, tal era o tamanho incontestável da minha emoção a abarcar a minha alma e todos os cantos do meu ser.
Naquele momento o meu coração fez o mundo parecer ter outra dimensão. Os meus pés levitaram do lugar fluido e ganhei asas comandadas pela imensa inquietação de chegar à minha amiga Violeta. A procura da terra cheia no meu coração levou-me a correr pela praia, a levantar toda a areia do meu caminho, a gritar a toda a velocidade – Violeta – e a espalhar agitação pela praia – Violeta, Violeta, Violeta. Uns segundos ficaram suspensos pela admiração, puxei-a para mim, ofereci-lhe um enorme abraço de amor, e apesar de já termos criado uma amizade, foi através do mar, sob o olhar das gaivotas e do céu azul, que vinculamos uma amizade para a vida toda. Aquele momento laçou para sempre a nossa constelação. E assim começou por brilhar cada coisa. E, cada coisa, tem uma música e a sabedoria da transparência das estrelas. Assim está no coração.
Criamos memórias e um álbum enorme daquele verão. Foi o mais especial guardado até hoje na minha memória, subtilmente demorado, e muito, muito feliz, como se a magia se depositasse no lugar mais perpétuo do cérebro e do coração e da alma e de todos os órgãos do ser humano que possam ou não guardar memória. Foi tudo enorme no meu coração que ninguém esperava que aquele amor fosse durar para sempre. Eu sei que ele é imortal, apesar de já ter sido exposto ao vento.
Ano de 2020, sei pouco da Violeta, atravessei o jardim a pensar nisto. A música acabou. Mas, e ainda assim, vou sabendo dela. Ali e aqui. Mais por ali. O meu amor por ela é diferente do amor dela por mim. Eu sei. Sempre foi. Todos os amores são diferentes na sua forma e pronúncia. Eu sou irritantemente coração e o meu vínculo continua ancorado ao órgão mais poderoso, como aquele laço que demos em 1999 a contrato de uma espécie de promessa. Porém, a onda do mar introduziu o medo, disse-me que não seria para sempre, mas não percebi na altura, apesar de a onda me ter roubado a palavra importante da frase e eu ter ficado amuada até hoje.
Aquele instante, em que o meu pai de câmara fotográfica na mão, pronto a disparar depois de escrever na areia, “amigas para sempre”, anunciava o futuro. O universo sabia que o ritmo da música ia desacelerar e acabar por desaparecer, apesar do amor continuar escrito no poema e as palavras de poesia serem expostas. Eu sei que ninguém reparou, mas o meu coração na altura ficou despedaçado e chorou… muito. Senti uma perda exagerada e o mar deixou de ser melodia, um pequeno vento passou e um ar grotesco depositou-se, como se a tempestade rompesse toda a minha felicidade. Rapidamente a tristeza marcou aquele retrato que guardo no baú das memórias e que não consigo, doutros lugares e dias, não terminar com um sorriso, mesmo que guardado pela melancolia.
Mas sei que o importante é sermos, e não precisa de ser para sempre. Nada o é. Por muito que doa cá dentro. Contudo, que enquanto se é, que sejamos capazes de derrubar qualquer tempestade do caminho e curar feridas profundas. Isto é mais bonito do que vivermos na mentira de algo que queremos prender, obrigatoriamente, a um final de filme – para sempre. O grito é de um pássaro, mas o amor permanece intocável. O para sempre foi eliminado pela onda do mar, mas não se apaga a certeza de um amor. A onda do mar não sabia, mas todo o esplendor da verdade e do cheiro que as palavras desenham, fica em nós. Num lugar que intitulam de coração.
Juliana Gomes, escritora
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