Enquanto estamos, única e exclusivamente, preocupados com a propagação ou não-propagação da COVID-19, em contar mortos e infetados todos os dias, aqui em acolá, em abrir telejornais com surtos, declarações de ministros e oposição que são a permanente silly season política, o grupo jihadista Estado Islâmico (EI) galga portos e aldeias em Moçambique e retoma a sua vontade de expansão a partir de outras geografias.
Enquanto estamos, única e exclusivamente, preocupados com a COVID-19, como se todos os males do mundo se tivessem concentrado num só, o Iémen continua a ser o palco das disputas entre xiitas e sunitas e a viver a maior crise humanitária de que há memória.
Enquanto estamos, única e exclusivamente, concentrados em abrir telejornais com a constatação de um ajuntamento aqui e ali, feito de pessoas felizes e a festejar, em exaltar a PIDE em cada cidadão para que controle a máscara do vizinho, o gel-desinfetante do tasco ao lado, este ano, só em Portugal, já são quase três dezenas as mulheres assassinadas, na sua maioria em contexto de intimidade, por companheiros ou ex-companheiros. O confinamento decretou o fim da possibilidade de libertação de muitas, obrigando-as à casa e ao convívio com os agressores, fazendo aumentar o desemprego e matando o sonho da independência financeira. Do ajuntamento do vizinho somos todos delatores, mas toda a gente sabe que “entre marido e mulher, não se mete a colher” e não passamos de uns cobardes denunciantes do pouco ou nada que somos capazes de enxergar nesta nossa cegueira visceral.
Enquanto estamos, única e exclusivamente, dedicados a partilhar notícias nas redes sociais sobre o mau uso de equipamentos de proteção individual, “memes” porque uma vacina feita pelos russos só pode ser piada, estudos e mais estudos sobre partículas, superfícies e as mais não sei quantas descobertas diárias sobre este vírus providencial, todos os dias, nos muitos campos de refugiados por essa Europa fora, morre gente de fome, a fugir da guerra. Ainda estes dias, a Grécia lançou centenas de refugiados ao mar, mas nós estamos é preocupados com os mergulhos do Presidente da República, o seu passatempo como nadador-salvador e o facto de defender que devemos usar todos máscara porque ele também usa.
Enquanto estamos, única e exclusivamente, obcecados com a COVID-19, não nos tendo ainda lembrado, de facto, de relativizar números em comparação com outras doenças à escala mundial e com o número de habitantes no planeta, há um doido na Bielorrússia agarrado ao poder, um golpe de estado no Mali e uma cidade como Beirute, capital de um país repleto de história como é o Líbano, onde mora gente como nós, destruída por negligência, por azar, e parece que ninguém quer saber, não é nada connosco, é lá com eles. Há uma crise política que agora se abafou com a pandemia; uma crise humanitária, aparentemente silenciosa, na Colômbia, pois que se fazem ouvidos moucos aos gritos de quem vive a miséria absoluta; Erdoğan continua no poder na Turquia e Santa Sofia de Constantinopla voltou a perder as suas funções culturais, sendo agora apenas uma mesquita, mas se fosse um incêndio em Notre-Dame de Paris estávamos todos combalidos.
Enquanto estamos, única e exclusivamente, focados em decidir entre se confinamos ou desconfinamos, se as pessoas são umas grandes irresponsáveis ou só querem viver, todos os dias aumenta o número de pessoas que se assumem como nazis, fascistas, xenófobos, racistas, sem medo de represálias porque sentem que o seu movimento tem voz, tem audiência, ganha força. E estamos nós preocupados com a APP que nos vai dizer se o nosso vizinho tem ou não COVID-19, em vez de estarmos preocupados em detetar o fascista, o reacionário que vai connosco no elevador e em denunciar, alertar, sem qualquer espécie de tolerância com todos aqueles que são intolerantes.
Enquanto muitos continuam a acreditar, como quem acredita no Pai Natal, que a COVID-19 estava escrita nas estrelas e que é o universo, a natureza, a pedir-nos que paremos, que relativizemos, que possamos decidir, em paz e em estado zen, o que é realmente importante, não nos apercebemos que o mundo parou e a única coisa que provocou foi o aumento das assimetrias, das desigualdades. A cultura, construtora de cidadania, literacia e Liberdade, foi o primeiro setor a parar, deixando centenas de milhares de pessoas, em todo o mundo, sem trabalho e permitindo que paire uma névoa de que não é essencial. Mas se um povo sem cultura não existe, um povo inculto deixa-se levar por qualquer ditador, de esquerda ou de direita, pouco interessa, já que a resposta não está nos extremos, mas no respeito pelas liberdades individuais e pelo reforço do coletivo através do equilíbrio entre aquilo que deve ser o papel do Estado e o de cada um de nós, indivíduos ou instituições de direito privado. As mulheres foram as primeiras, como sempre, a terem que sacrificar carreiras e a ter que cumprir a obrigação de ficar em casa com os filhos, permitindo recuos em décadas de luta pela igualdade de oportunidades no mercado laboral. E nada disto tem que ver com ignorar a pandemia. Não. É ciência e todos a reconhecemos. Mas foi laxismo puro não a considerar mais cedo e pensarmos todos que uma coisa que se passava na China não afetaria o resto do mundo porque, afinal, é isso que acontece sempre: Moçambique, o Líbano, a Grécia, a Venezuela, a Colômbia, a Turquia, é tudo muito longe e essa gente não tem nada que ver connosco. Só que não. Só que têm e chega a COVID-19 e nós não sabemos o que fazer, para além de deixarmos que a PIDE que há em cada um de nós tome conta da ocorrência e passemos a controlar a máscara do vizinho.
Enquanto estamos preocupados em perceber se são os de direita ou os de esquerda que estão certos sobre o tema da COVID-19, não percebemos que os totalitaristas e os loucos não são nem de uma coisa nem de outra, mas apenas da sua loucura. O planeta tem gente a mais, gente que o torna ambientalmente insustentável, já o dizia Bill Gates há uns anos… Mas agora é investidor em sete laboratórios que produzem vacinas porque é, de facto, muito boa pessoa e não tem interesses económicos nenhuns em nada disto. Nenhuns. É um santo e espero que uma qualquer igreja ainda o faça santo. E a revolução tecnológica que tudo isto fez acelerar… Mas não falemos disto porque a COVID-19 foi azar. Um azar do caraças, diria! As pequenas e médias empresas não aguentam, as famílias entram em falência a todos os níveis. Mas as grandes indústrias, a começar pela farmacêutica e a acabar nas alimentares, passando pelas tecnologias, crescem, só crescem. Se foi o universo que conjeturou esta pandemia para equilibrar as coisas, saiu-lhe um bocado ao lado porque não vamos todos ficar bem, nem tão pouco estamos gratos.
A loucos como Trump ou Bolsonaro pouco importa que morra gente, até porque eles sabem que morrerão os mais pobres, os mais desfavorecidos, os que não têm acesso a cuidados de saúde ou água potável e é por isso que ignoram o vírus: porque a perda de vidas humanas serve os seus interesses e, enquanto isso, com o disfarce de uma crise económica, continuará o desbaste sem precedentes da Amazónia e, nos EUA, a injeção a fundo perdido de capital nas grandes empresas cotadas em bolsa, de amigos de Trump.
Não, não é teoria da conspiração. É antes a teoria da distração. Enquanto tudo isto acontece, tudo o resto é camuflado e no planeta Terra só aumentam as desigualdades, só cresce a desumanização. Vamos ignorar o vírus? Não. Mas não vamos viver com medo e permitir que nos coloquem a mordaça e nos impeçam de continuar outras lutas, todas as lutas. É preciso viver com o vírus porque, à maioria de nós, o vírus não mata, mas matar-nos-á a cura. Devagar e sem pressas. Até que sejamos todos escravos, controlados pelo Estado e relegados a sonhadores de sofá que se satisfazem com um comando de televisão.
Marc Bloch (1886-1944), historiador ligado à fundação da Escola dos Annales, a que primeiro aproximou as ciências sociais da história, escreveu que “A ignorância do presente nasce fatalmente da incompreensão do passado.” Ora, estamos sempre a perguntar-nos em que livro de História é que já vimos isto acontecer e continuamos com medo, tolerantes com os intolerantes. Não podemos.
Helena Mendes Pereira
Curadora / Escritora