Sem Treta

Marta Ribas: “Muitas pessoas já relatam estar a vivenciar os impactos da pandemia a nível psicológico”

Chegamos a junho e parece haver uma “luz ao fundo do túnel”. As ruas começam a ganhar movimento, o comércio já reabriu, matam-se saudades de amigos e família. A medo, a vida recomeça. Há quem continue a preferir resguardar-se em casa, há quem não faça mais do que os  ditos “passeios higiénicos”, há quem já consiga passear ao ar livre, mas evite os espaços fechados. Como é que podemos retomar a vida “normal”? Conseguiremos sair sem medo? Marta Ribas, Psicóloga no NeuroGime – Clínica de Neurorreabilitação, ajuda-nos a compreender os efeitos da pandemia na nossa saúde mental.

Como podemos combater o medo de sair à rua?

O medo, face a uma ameaça que é real, é normativo. É expectável que surja um leque variado de emoções, que incluem o medo, a tristeza, a raiva, a irritabilidade, a culpa. São tudo emoções humanas e não devem ser ignoradas ou suprimidas. 

No entanto, é importante perceber se o medo de sair de casa se torna condicionante, provocando um prejuízo nos diferentes contextos de vida do indivíduo. Isto acontece quando, por exemplo, são colocadas em causa atividades necessárias como a compra de bens essenciais, a procura de cuidados médicos ou o trabalho; quando a pessoa evita qualquer saída de casa, mesmo em espaços abertos com risco de infeção muito reduzido; ou, quando sempre que é inevitável sair de casa, a pessoa é acompanhada por um medo desproporcional face à ameaça real daquela situação específica (não me refiro a pessoas pertencentes a grupos de risco, que devem resguardar-se de acordo com a sua condição). Nestes casos, a procura de ajuda psicológica especializada é fundamental. 

É importante haver uma adaptação daquilo que era o nosso modo de vida normal antes da pandemia. Há muitos ajustes que devem ser feitos e não devemos esquecer-nos que temos uma responsabilidade, não só individual, como coletiva. 

Devemos, acima de tudo, lembrar-nos que, se cumprirmos com as medidas de proteção que estão ao nosso alcance, embora haja a possibilidade de contaminação, esta deixa de ser tão provável. É importante encontrar um equilíbrio de forma a que estejamos protegidos, sem condicionar significativamente a nossa vida.

Para gerir o medo de sair à rua, deve-se procurar uma exposição gradual, segura e responsável, a esse medo. Pode tentar sair de casa uma vez por dia, por exemplo, para dar um passeio curto, em espaço aberto e recorrendo às medidas de proteção. É importante falar sobre esse medo com amigos ou familiares de confiança, que muitas vezes partilham dos mesmos receios. Devemos lembrar-nos que não temos controlo sobre o comportamento dos outros, na medida em que, frequentemente, está presente o receio de que não sejam responsáveis e não tenham os cuidados que deveriam ter. Nesses momentos, devemos focar-nos naquilo que realmente podemos controlar, respeitando as recomendações das autoridades de saúde e dando o exemplo. Assim, devemos continuar a assegurar-nos que cumprimos com as medidas de proteção já por todos conhecidas como a lavagem das mãos, uso de máscara, etiqueta respiratória, distanciamento físico adequado, por exemplo. Nos casos de profissionais que têm de exercer as suas funções presencialmente, não estando disponível a opção de teletrabalho, é natural que esteja presente alguma ansiedade acrescida, sendo que, para além das suas funções, têm de garantir que cumprem com as medidas de proteção. Nestes casos, é importante que a entidade assegure que estão disponíveis as condições necessárias à prática das normas de segurança. 

Devemos, acima de tudo, lembrar-nos que, se cumprirmos com as medidas de proteção que estão ao nosso alcance, embora haja a possibilidade de contaminação, esta deixa de ser tão provável. É importante encontrar um equilíbrio de forma a que estejamos protegidos, sem condicionar significativamente a nossa vida. Todos os cidadãos têm um papel social, de responsabilidade, sendo que cada um de nós pode contribuir para evitar a propagação do vírus. 

Algumas pessoas demonstram tristeza causada pelos dias de isolamento, pelo afastamento dos entes queridos e incertezas quanto à situação laboral. Como é que se distingue entre uma tristeza “normal”, associada a todos estes fatores, e uma depressão? Quando é que as pessoas devem procurar acompanhamento? A tristeza é ocasional, tem uma duração e, normalmente, surge como resposta a eventos externos. É expectável que numa fase em que estamos a ser afetados em vários domínios – profissional, social, económico e pessoal – esta emoção surja. A tristeza é passageira e, por isso, não condiciona o dia a dia do indivíduo de forma acentuada. Por sua vez, a depressão caracteriza- se, principalmente, pela presença de humor deprimido e/ou pela perda de interesse e prazer em atividades que anteriormente eram agradáveis e procuradas pela pessoa. Ao contrário da tristeza, pressupõe uma duração de pelo menos duas semanas, sendo que os sintomas têm de estar presentes quase todos os dias, ocupando a maior parte dos mesmos. Pode incluir mudanças no sono, no apetite e no peso. Para além disso, podem estar presentes sentimentos de culpa excessiva (por exemplo, de poder estar a colocar um familiar em perigo de infeção), ou de diminuição de energia (fadiga): atividades que dantes fazia sem nenhum custo podem tornar-se exaustivas, como levantar-se da cama, por exemplo. Podem também existir dificuldades de concentração na tomada de decisões e, em casos mais graves, pensamentos acerca da morte. 

Desta forma, se estiver presente tristeza que é persistente e intensa e que é causadora de sofrimento significativo, se houver uma diferença acentuada no funcionamento da pessoa antes e depois do surgimento destes sentimentos e se estão presentes alguns sintomas dos acima mencionados, então, é imprescindível a procura de ajuda especializada. No entanto, importa relembrar que a intervenção psicológica não se dirige apenas a casos de perturbação mental. 

A forma como trabalhamos, como estamos com os nossos amigos e familiares, a forma como vivemos tem de ser, em muitos aspetos, reinventada. As mudanças que se vão instalando criam ansiedade, medo, dúvidas. É natural que haja receios relativos à sua saúde e à saúde dos seus familiares, receios relativos à situação laboral e financeira, bem como receios de sair de casa e de contacto social.

Qualquer pessoa, em qualquer fase da sua vida, pode recorrer a um psicólogo. A psicologia não trabalha apenas com abordagens remediativas, tem um trabalho também muito importante a nível preventivo. Numa fase como esta, é natural que fiquem sequelas a nível da saúde mental e, por isso, a procura de um psicólogo, desde já, poderá fazer toda a diferença. 

Há crianças que estiveram um grande período de tempo em casa com os pais. Ao regressarem às rotinas pode existir ansiedade de separação? Mesmo no caso de crianças mais crescidas? A Ansiedade de Separação – medo excessivo por parte da criança aquando da separação dos pais, ou de outras figuras de vinculação – é mais comum em crianças com menos de 12 anos. O que não quer dizer que não possa ocorrer em idades mais avançadas, sendo também possível em adolescentes e até adultos (embora seja raro). Crianças que já apresentavam vulnerabilidade para a ansiedade, ou que já demonstravam medo nos momentos de separação dos pais, podem sofrer uma exacerbação dos sintomas, espoletados por esta fase da pandemia. Assim, importa atentar a alguns sintomas que possam estar presentes, como é o caso do medo persistente do afastamento dos pais, que pode surgir no momento da separação, ou até na previsão desse momento. Para além disso, poderão surgir preocupações recorrentes com a possibilidade de perda dos pais, devido à infeção por Covid-19, por exemplo. A criança pode, também, começar a recusar sair de casa, ou apresentar relutância persistente em ir para a escola. Ademais, pode começar a evitar dormir sem os pais por perto e a ter pesadelos repetidos envolvendo a temática da separação. Cada criança tem uma forma específica de responder perante situações desafiantes e, por isso, é importante que os pais atentem aos sinais que surgem durante esta fase difícil. Assim, um leque variado de reações é possível, podendo incluir a apatia, a tristeza, o isolamento, a dependência, a irritabilidade ou a zanga. Qualquer que seja a resposta da criança, é importante que os pais assumam não só uma postura de compreensão face aos medos, como também que expliquem, de forma adaptada à idade, os contornos da situação, transmitindo segurança à criança. 

Há algumas estratégias psicológicas ou comportamentais que possam ajudar a espoletar uma criatividade que possa ter sido perdida com o isolamento? Sem dúvida que esta fase pode ser vista como uma oportunidade de desenvolvimento de projetos profissionais/pessoais que exigem criatividade da nossa parte. O facto de muitos de nós terem mais tempo cria uma pressão para que esse tempo seja aproveitado e gerido da melhor forma. E a comparação, muitas vezes através das redes sociais, acaba por ter aqui um papel importante: ao vermos os outros a serem produtivos, há como que um sentimento de culpa por nem sempre o conseguirmos. No entanto, convém não esquecer que, numa fase como esta, em que temos de reinventar a nossa forma de estar e de trabalhar, momentos de bloqueio são perfeitamente normais. 

As condições necessárias à existência de criatividade passam por uma organização das tarefas que temos em mente (consoante os nossos objetivos e prioridades) e, acima de tudo, pela diversidade de tarefas com as quais nos vamos envolvendo. De facto, é crucial haver uma troca de tarefas/atividades ao longo do dia, de preferência com diferentes exigências cognitivas. Por exemplo, se estiver a trabalhar num projeto de programação no computador – que, à partida exigirá raciocínio, velocidade de processamento e memória de trabalho – a tarefa seguinte pode ser ler um livro, que irá exigir funções cognitivas relacionadas com a linguagem e memória verbal. De realçar que os momentos de lazer e descanso são fundamentais e podem ser utilizados entre tarefas mais exigentes. Ademais, a organização dos nossos afazeres por objetivos cria um sentido de estruturação e de recompensa a longo prazo, essenciais também à promoção de criatividade. Por fim, todas as atividades que envolvam livros, música, filmes e outras formas de arte são relevantes na promoção de flexibilidade cognitiva, ou seja, dão-nos a oportunidade de pensarmos de diferentes formas acerca de nós, dos outros e do mundo. 

Na verdade, muitas pessoas já relatam estar a vivenciar os impactos da pandemia a nível psicológico. Embora grande parte esteja a lidar com sintomatologia que não é suficiente para um diagnóstico de perturbação psicológica, esta não deve ser desconsiderada.

É expectável que uma grande parte das pessoas precise de um período de adaptação a estes novos tempos? Que “sintomas” podem exibir durante esse período? Claro que sim, tem de haver um período de adaptação. A forma como trabalhamos, como estamos com os nossos amigos e familiares, a forma como vivemos tem de ser, em muitos aspetos, reinventada. As mudanças que se vão instalando criam ansiedade, medo, dúvidas. É natural que haja receios relativos à sua saúde e à saúde dos seus familiares, receios relativos à situação laboral e financeira, bem como receios de sair de casa e de contacto social. Volto a reforçar que há um leque muito variado de respostas a estas mudanças, dependendo de pessoa para pessoa e, por isso, os momentos de tristeza, culpa, raiva e bloqueio são normativos. É importante que se identifiquem estas emoções e que se perceba de que forma é que se manifestam em cada um de nós, ao invés de nos criticarmos pelo que estamos a sentir. 

No entanto, aqueles que já apresentavam vulnerabilidade para sintomatologia ansiosa ou depressiva, ou que até que já lidavam com um diagnóstico de perturbação mental podem ver os seus sintomas exacerbados nesta altura. Para todos os que se encontrem nesta situação, manter ou procurar um acompanhamento por um profissional de saúde é indispensável. 

De facto, prevê-se um agravamento da saúde mental dos portugueses face a esta situação, a curto, a médio e a longo prazo. Sintomas de ansiedade (medo ou evitamento de saídas de casa, por exemplo), sintomas depressivos (humor deprimido, ou perda de prazer, por exemplo) e sintomatologia obsessivo-compulsiva (como a lavagem de mãos de forma muito repetida) poderão tornar-se mais comuns ao longo do tempo. Na verdade, muitas pessoas já relatam estar a vivenciar os impactos da pandemia a nível psicológico. Embora grande parte esteja a lidar com sintomatologia que não é suficiente para um diagnóstico de perturbação psicológica, esta não deve ser desconsiderada. 

Seja pela presença de preocupações, seja pelo isolamento a que esta fase muitas vezes obriga, seja por conflitos interpessoais mais frequentes (principalmente para quem vive com os familiares e passa mais tempo com eles), ou qualquer outra dificuldade que possa estar a passar nesta fase, falar sobre e procurar ajuda é sinal de resiliência. A opção online, a que uma grande parte dos profissionais de saúde já aderiu, é uma opção bastante interessante nesta altura. Assim, volto a relembrar que os psicólogos têm um papel fundamental nestas questões, atuando não só em casos em que está presente uma perturbação mental, mas também a nível preventivo, promovendo o bem estar e a qualidade de vida de quem procura a sua ajuda.

 

NeuroGime – Clínica de Neurorreabilitação

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