Sem Treta

“Não me canso de procurar as cores, até nos dias mais cinzentos”

Fotografias: © David P. P. Alves

Chama-se Alexandra Abreu, mas o seu nome do meio poderia ser “criatividade”. Poderá conhecê-la como a artista plástica “Xana Abreu”, ou mesmo como a sonhadora “Xana Toc Toc”, mas a Xana é muito mais do que estas duas facetas. Ela pinta, desenha, canta, esculpe, costura, programa, filma, atua… e sorri, muito. Em entrevista à Minha confessa que a sua vida se pauta por verdade, tolerância e muito trabalho.

Xana, estudaste artes plásticas e pintura. Sempre soubeste o que querias ser? Sim, desde pequenina que tenho esta paixão dentro de mim. Quando os adultos me perguntavam se eu já sabia o que queria ser, eu respondia sem hesitar – pintora!… Artista! Desde pequenina que eu sabia que queria trabalhar nas artes, só não sabia que ia fazer tantas coisas nas diferentes vertentes artísticas, como a música, as artes plásticas, a ilustração, o vídeo…

Em pequena também rabiscavas as paredes de tua casa? Sim, como qualquer criança! Mas a minha mãe sabia impor as regras, cedo percebi que a liberdade artística não era tanta [risos].

E a música, como entrou na tua vida? Em minha casa ouvia-se música, o meu irmão ouvia rock, sobretudo Rolling Stones e a minha mãe ouvia muito fado, especialmente a Amália. Cresci a ouvir música e ela entranhou-se em mim muito naturalmente, sempre gostei de ouvir e sempre adorei cantar, foi um processo muito natural. Lembro-me em pequena de cantar com uma colher a fazer de microfone em frente ao espelho. Na adolescência comecei a entrar em projetos musicais em que cantava e tocava percussão, a coisa tornou-se séria e acabei por dedicar muito da minha vida à música, por paixão e por necessidade.

No teu site dizes que “o maior desafio da Humanidade, o mais difícil e complexo, é encararmos todos os seres vivos como parte da nossa família”. Acreditas que a tolerância pode fazer a diferença? É o que nos falta para um mundo mais fraterno e justo? Não tenho a mínima dúvida! Todos os grandes problemas da Humanidade são fruto da incompreensão, da falta de tolerância e da ignorância. As pessoas têm uma tendência muito infeliz de tentarem converter os outros às suas crenças, sejam elas religiosas, ou outras. O racismo, a misoginia, o antissemitismo, enfim, qualquer aversão ou repulsa que as pessoas sentem em relação a outro grupo é baseada em preconceitos descabidos e se houvesse uma vacina contra a intolerância, mesmo nos dias que correm, seria uma vacina bem mais importante que a vacina contra o Covid19. Não poderia também de deixar de falar nos animais, que coloco ao mesmo nível que os humanos. Este planeta é de todos.

Que artistas influenciaram ou inspiraram a tua obra? Ui! Essa pergunta… São tantos! Eu inspiro-me em tudo o que me rodeia, desde um passeio a pé pelas ruas coloridas de Pipa, no Brasil, até à inocência de uma criança. As inspirações estão aí para quem tiver os olhos e o coração aberto. Mas, para ser mais específica, tenho admiração pelo trabalho de muitos artistas, como  o Egon Schiele, a Frida Khalo, a Rebecca Dautremer, ou até os desenhos das crianças, acreditando que todas elas são artistas.

Consegues eleger uma preferida entre as obras que criaste? Não, isso é uma missão impossível… Nem me atrevo a pensar nisso! Estaria a ser injusta com todas as outras obras. Cada obra tem o seu valor e ganha vida própria assim que a termino. Segue o seu percurso, já não me pertence.

A tua pintura, mesmo quando aborda os vícios da humanidade, é vibrante e colorida, quase nos transporta para um mundo encantado. É o mundo em que gostarias de viver ou é aquele que já acreditas existir, mesmo que nem sempre à primeira vista? Essa pergunta é difícil. Eu penso que será mais o mundo em que gostaria de viver do que propriamente um mundo que já exista. Claro que ele existe na minha cabeça e no meu coração, mas a vida real é um pouco mais complicada e as cores não são tão vibrantes. Mas é a vida que temos e eu nunca desisto de a tornar mais colorida, seja para mim ou para os outros. Não me canso de procurar as sensações, as alegrias, as gargalhadas, enfim, falando em sentido figurado, não me canso de procurar as cores, até nos dias mais cinzentos. Desde pequena que sou viciada em imaginar mundos paralelos.

A atração ou fascínio pelo fantástico sempre foi uma constante na tua vida? Absolutamente. Digamos que a minha imaginação é ilimitada e o que vejo na terra, aquilo que está limitado pela força da gravidade, aquilo que existe ao nível do chão, nem sempre me satisfaz plenamente. Há um mundo para além do que os nossos olhos veem e esse é um mundo que vale a pena visitar, nem que seja aos fins de semana [gargalhadas].

Cresci e vivo na pele de uma mulher e se a minha arte é um reflexo do que sou, então é apenas natural que o faça. Todas as mulheres que pinto acabam por ser o reflexo de mim mesma, da minha alma.

Podes falar um pouco do processo criativo das tuas obras? Algumas delas são sonhos em forma de tintas? Felizmente a criatividade nunca foi um problema para mim, nasci criativa e morrerei criativa, não me conheço de outra forma, perco-me e reencontro-me no mundo das artes. Por eu ser assim, a criação de uma nova obra não é um processo difícil, não tenho bloqueios criativos, o que me falta é tempo para fazer tudo o que quero fazer. Seja uma pintura, o guião de um filme ou um livro, as ideias pululam na minha cabeça. Muitas vezes tenho dificuldades em adormecer e lá tenho eu de acender a luz e escrever as ideias num pedaço de papel ou gravar uma melodia de uma canção no meu telemóvel. Enquanto não deixar registadas as ideias que me assaltam sem pedir licença, nem tento adormecer, seria inútil. E para responder à pergunta, sim, eu pinto os meus sonhos, mas não só, pinto o que sinto, o que vejo, pinto as mensagens que recebo do meu coração… A minha arte sou eu, faz parte de mim. Até posso dizer que a realidade confunde-se com a imaginação de tal forma que às vezes nem eu sei se esta ou aquela história que pinto aconteceu mesmo ou é fruto da minha imaginação. E não me parece que isso seja relevante.

As tuas pinturas retratam várias figuras femininas. Porquê? Consideras-te feminista? Sim, sou feminista. Não no sentido mais radical do termo, mas não encontro, até porque não existe, nenhuma razão para as mulheres não terem os mesmos direitos e as mesmas oportunidades que os homens. E porque pinto mulheres? É um processo natural, não foi pensado, mas essencialmente será porque eu sou mulher e identifico-me naturalmente mais com as mulheres. Cresci e vivo na pele de uma mulher e se a minha arte é um reflexo do que sou, então é apenas natural que o faça. Todas as mulheres que pinto acabam por ser o reflexo de mim mesma, da minha alma. E desta forma não me sinto tão sozinha.

Em conversa disseste-me que és uma solitária, até porque passas muito tempo sozinha a criar. Ao mesmo tempo nota-se que és uma pessoa profundamente dada ao outro. Como tornas possível este equilíbrio entre duas “Xanas”? Confesso que nem sempre é fácil. Há momentos em que é até muito difícil. Eu adoro estar com pessoas, adoro sociabilizar e tenho pena que a pintura seja um processo tão solitário. Sinto falta de ter uma vida social mais regular, conviver mais, rir mais, partilhar mais emoções conjuntas, mas para conseguir criar tenho de estar sozinha, é o que é. Tenho de estar isolada, muito concentrada no meu mundo interior. 

Quando e porque decidiste criar a Xana Toc Toc? 

Até 2010 sempre tive muitos projetos e conciliá-los nem sempre era fácil, por vezes não conseguia avançar da forma que achava melhor porque quando trabalhamos com outras pessoas que não veem o caminho da mesma forma que nós, acabamos por nos sentir frustrados e chegou uma altura em que senti que tinha de parar de uma forma radical com tudo o que estava a fazer. Saí de todos os projetos em que estava no espaço de uma semana. Não foi um processo fácil, estive um ano parada. Foi uma pausa que o meu corpo já me andava a pedir há algum tempo, mas foi uma pausa que me permitiu refletir, pensar naquilo que eu queria realmente fazer e acabou por ser o ano em que fui desenvolvendo o projeto Xana Toc Toc. A ideia era criar um projeto onde eu pudesse juntar as várias vertentes artísticas que me interessavam, como a música, o vídeo, a ilustração, a costura, a cenografia, enfim, juntar as peças todas num só projeto. Quando o projeto já estava pronto, foi mostrado à Universal Music e a Ana Hernandez, diretora da Universal, que eu considero uma visionária, apaixonou-se logo. Ela disse-me numa reunião que acreditava no projeto e que mesmo que não fosse um sucesso no início, ela gostaria de trabalhar nele a longo prazo. Entrou para o primeiro lugar do top nacional de vendas na semana em que foi lançado e aí permaneceu durante quarenta e uma semanas consecutivas. Estávamos todos estupefactos! E felizes! [gargalhadas]

Foste pioneira no ramo e é justo dizer que tiveste (e tens) muito sucesso. Foi um caminho fácil? Quais são os principais ingredientes desse sucesso? Foi um caminho que deu muito trabalho. Muito mesmo! A questão é que o trabalho não me assusta e quando trabalhamos em algo que gostamos, isso acaba por ser um privilégio imenso. Nesse sentido não foi difícil. Estava empenhada e, juntamente com o meu companheiro, que é realizador e editor, as coisas fluíram. Fizemos tudo sozinhos, as músicas, os vídeos, as roupas, os cenários, tudo. Penso que o principal ingrediente para o sucesso foi o facto de eu fazer este personagem com verdade, e as pessoas notam isso. A Xana Toc Toc sou eu! É uma caricatura de mim própria, uma pessoa curiosa, que adora o fantástico e que vê magia em todos os lugares, que gosta de pintar, de cantar, de ter amigos, da natureza, dos animais… 

As crianças (e adultos) reconhecem-te na rua? Os pais, sem dúvida! As crianças têm mais dificuldades porque sem o meu vestido e a flor no cabelo não me associam à personagem. Mas basta eu fazer-lhes uma careta mais Toc Toc e os seus olhinhos brilhantes abrem-se num misto de surpresa e felicidade. As pessoas são sempre muito simpáticas e sinto-me uma sortuda por ter este reconhecimento. 

Mas sinto que de uma certa maneira já estou a viver um sonho, tenho uma família linda, trabalho no que gosto, às vezes também é importante sonhar menos e dar valor ao que temos. E isto dito por uma sonhadora pode parecer uma contradição, mas não é.

Nota-se que és muito próxima da tua filha, a Marta Peneda. É a tua criação mais perfeita? É a minha criação mais perfeita, sem dúvida. É uma luz na minha vida que me ensina tanto e que preenche o meu coração de uma forma que eu não imaginava possível. Não posso passar um dia sem falar com ela várias vezes… não pretendo explicar o amor que sinto por ela com simples palavras porque esse seria um exercício com graves limitações. Agradeço ao mundo todos os dias por ela se ter tornado neste ser tão maravilhoso, com tanta bondade no coração e por poder partilhar com ela esta caminhada. É nela que me inspiro para me tornar um ser humano melhor.

Que projetos tens na manga para os próximos tempos? Tenho alguns projetos que não posso ainda divulgar, mas irei continuar a criar, que é o que eu gosto de fazer, é o meu oxigénio. Tudo o que eu fizer vai permanecer nessa esfera porque é esse o meu mundo. Há outros países neste e noutros continentes que estão atentos ao que estou a fazer e por isso mesmo tenho recebido convites para internacionalizar projetos e fazer parcerias muito interessantes.

Que sonhos ainda tens por concretizar? Ultimamente tenho andado muito a pensar em adotar uma criança. Não posso ainda dizer que o farei, mas é uma ideia que tem estado muito presente na minha vida. Mas sinto que de uma certa maneira já estou a viver um sonho, tenho uma família linda, trabalho no que gosto, às vezes também é importante sonhar menos e dar valor ao que temos. E isto dito por uma sonhadora pode parecer uma contradição, mas não é. Talvez todos possamos viver o sonho, se soubermos valorizar o que temos de uma forma mais atenta e tentarmos dar mais magia ao que nos rodeia. Sabermos ver para além do que é visível. Apesar de procurar esta verdade todos os dias, sonho bastante em viajar e estar mais conectada com a Natureza. A nível profissional, gostava enquanto atriz de interpretar numa longa metragem o papel de um personagem forte, saindo da minha zona de conforto. Já fiz cinema antes e tenho muitas saudades, gostaria de voltar a fazer.  Adoro novos desafios e o meu maior sonho é ter saúde para conseguir concretizá-los.

 

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