Sem Treta

“Somos um povo solidário que arregaça as mangas para fazer o que é necessário”

Bruno Horta tem 38 anos, é Programador Sénior na empresa Void Software Leiria e é o responsável pela criação do Movimento Maker em Portugal. Criado há três anos, o Movimento junta profissionais de várias áreas que se ajudam mutuamente e, através da partilha de saberes, criam de tudo um pouco. Durante a pandemia, o Movimento foi responsável pela criação e execução de milhares de viseiras doadas gratuitamente aos mais diversos profissionais.

O que é o Movimento Maker? Como surgiu?

O Movimento Maker surgiu há três anos, quando senti a necessidade de juntar o imenso conhecimento existente no nosso Portugal. No que toca aos Makers (fazedores) é necessário conhecer várias tecnologias, métodos e profissões. Porque não juntar todas essas pessoas que são muito boas em determinadas áreas e permitir que cada uma delas possa partilhar o seu mais sincero conhecimento com base na experiência? O Movimento Maker é um grupo que, num ambiente muito descontraído e sem “tretas” se ajuda mutuamente, permitindo assim que quem deseja fazer alguma coisa o consiga com a ajuda de quem sabe e quer partilhar essa sabedoria.

 

Tem uma estimativa da quantidade de membros do Movimento?

Já ultrapassamos os 13 mil.

 

A UE e os EUA estão a criar leis que defendem o consumidor, dando-lhe a possibilidade de reparar os seus equipamentos (Lei do Direito à Reparação). Vê nisso uma oportunidade futura para o Movimento Maker? Acha as medidas criadas até agora pelos governantes suficientes para proteger o consumidor, ou acha que ainda deveriam ir mais longe?

Eu sou completamente a favor de fazer de produtos Open Source/Open Hardware. São soluções em que o fabricante disponibiliza a arquitetura, ou a forma como fez os produtos publicamente. Isso permite não só utilizar uma forma mais rápida ao direito à reparação, como abre portas à inovação, visto que quem quer melhorar o produto não tem de voltar à estaca zero. É claro que, para isto ser sustentável, a empresa/inventor inicial da ideia tem de estar informado do desenvolvimento ou evolução e ter acesso aos mesmos da mesma forma que foram disponibilizados.

 

Sabemos que idealizou um protótipo de viseira que depois foi aperfeiçoando com o contributo da comunidade. Alguma vez imaginou que esse primeiro pensamento tivesse a aceitação e repercussão que teve?

Sim, já sabia que ia ter aceitação da comunidade, o grupo é muito unido e para os que aparecem agora, saliento que não somos um Grupo só de viseiras, nem um grupo que apareceu agora devido ao Covid-19. Existimos há três anos e, sempre que algum membro aparece com uma ideia, todos nós como comunidade ajudamos a aperfeiçoar, testamos e damos feedback. Um projeto muito parecido tem sido o BH OnOfre, um dispositivo que permite automatizar as nossas casas. Foi um projeto desenvolvido por mim e tem sido testado e utilizado pelos Makers: sem eles o OnOfre nunca tinha chegado ao que é agora. É muito importante termos o apoio da comunidade e se esta comunidade for como a nossa, onde temos grande mentes brilhantes, então posso dizer que nada é impossível para nós. 

 

Encontraram algumas dificuldades, com as primeiras viseiras a causar algum desconforto a quem as usa. Foram aperfeiçoando os modelos a partir do feedback de quem as usava?

Muito modelos parecem perfeitos ao início, o problema era quando tínhamos de os usar por várias horas consecutivas, aí sim, aparecia o desconforto, ou a dor em utilizar tal equipamento de proteção. Então, com a ajuda de todos os Makers, imprimiam em casa os modelos que eu ia melhorando com base no feedback dado pelos utilizadores a que eles mesmos entregavam as viseiras para teste. É sabido que todas as cabeças do humano têm dimensões e ergonomia díspares: com este tipo de teste conseguimos em dois ou três dias verificar qual o modelo que se adaptava melhor a todas as diferenças. A importância  de não embaciar, de não magoar, de serem facilmente desinfetadas foram tidas em conta e essa informação e validação chegou até mim por parte de pessoas que realmente utilizavam a viseira durante longos períodos de tempo. Isso foi perfeito para chegarmos a uma solução que resulta, mesmo tendo nós utilizado um curto período de desenvolvimento.

 

Como é que chegaram à produção industrial? Contactaram ou foram contactados por outras empresas?

A vantagem do nosso grupo é mesmo essa, nele existem muitas pessoas que são donas de empresas, ou que trabalham em empresas e estão sempre prontas a ajudar. Eu fiz apenas uma publicação a apelar à ajuda da indústria e no minuto seguinte já tinha várias opções. O Sérgio Martins e o Luís Távora da 3DTav foram as “máquinas” responsáveis por fabricar um molde em apenas dois dias, um processo que normalmente demora meses! Depois de termos o molde era necessária uma empresa que conseguisse injetar plástico no mesmo e apareceu a Plastidom. Posso dizer que tivemos muita sorte, são uma empresa que trabalha com o coração, durante quatro semanas fabricaram e permitiram doar 30 mil viseiras, mobilizaram recursos e pessoas para fabricar e assegurar uma linha de montagem. Depois disso era necessário fazer chegar as viseiras a quem precisa… Nesse campo tivemos o apoio da Cruz Vermelha de Leiria (Rita Santos), da Envialia Coimbra e da Mauser.

 

Ainda assim, há muitos makers que continuam a trabalhar de forma independente, certo? E cada um suporta as suas despesas?

Sim, muitos Makers continuam a fabricar e a suportar todos os custos, só demonstra a força e vontade que o coração dos nossos membros é capaz de fazer.

Quem faz as viseiras individualmente como sabe a quem as deve entregar? Quem as faz individualmente já tem por base um pedido de alguém: pode ser familiar, conhecido, ou alguém da sua zona. Foi muito importante este tipo de abordagem distribuída, porque permite a quem está a fazer as viseiras entregar diretamente a quem necessita e sentir na pele o sentimento de entreajuda, pois é esse sentimento de realização que faz mover todos os Makers.

 

Até ao momento, o Movimento já fabricou quantas viseiras? Continuam os pedidos a surgir?

Não sabemos ao certo porque nunca quisemos fazer marketing disso, a nossa preocupação sempre foi fazer chegar a quem precisa as viseiras e nunca as contabilizar. Os pedidos continuam a surgir, agora um pouco mais por parte de empresas privadas que querem regressar ao trabalho e precisam de algum equipamento de proteção. Nesse setor será a indústria a responder com a comercialização de viseiras de baixo custo que permitirá sustentar um pouco a economia e ajudar quem precisa. 

 

Como é que as pessoas que não possuem impressoras 3D, ou não têm grandes conhecimentos na área vos podem ajudar? O que vos faz falta neste momento?

Neste momento a melhor ajuda que podem dar é ficarem em casa e sensibilizarem outras pessoas a fazer o mesmo, só assim será possível combater este vírus.

 

Neste processo todo – que foi extremamente célere – quantas noites ficou sem dormir? Acredito que, entretanto, tenha deixado um pouco a sua vida profissional e pessoal de lado…

A primeira semana foi muito complicada, dormia poucas horas para conseguir testar e fabricar o maior número de viseiras, cheguei a ter quatro impressoras a fabricar e a cada 45 minutos tinha de retirar a viseira, terminar, e mandar imprimir outra. No que toca a vida pessoal, a minha esposa Rita Oliveira apoiou-me a 300% nesta causa, ela tratava de toda a logística de entrega e montagem de viseiras impressas. Na parte profissional a Void deixou-me completamente à vontade para me dedicar a 100% ao projeto. 

Temos mentes brilhantes e a melhor indústria do mundo, somos um povo solidário que arregaça as mangas para fazer o que é necessário e para isso só é preciso acreditar em nós.

 

É justo dizer que o Movimento Maker é, neste momento, um Movimento solidário?

O Movimento sempre foi um grupo de partilha e entreajuda, ao longo de três anos temos percorrido Portugal com a companhia de outros Makers como o Ricardo Pereira, Nuno Miguel, Vasco Santos, suportando todos os custos de viagem para realizar Workshops gratuitos sobre as mais diversas áreas: Eletrónica, 3D, Modelação, Impressão, Programação etc…. No que toca às viseiras, fizemos o que era preciso fazer, apelamos à indústria para que começasse a produzir este equipamento e que o pudesse comercializar a baixo custo. Enquanto isso não acontecia, fomos imprimindo e doando tudo o que nos era possível fabricar, tivemos a sorte de a indústria também fazer milhares de doações, o que originou uma onda de solidariedade gigante em todo o país. É importante agora também ajudar essas empresas porque podemos num futuro próximo precisar do seu apoio. 

 

Estamos a fazer estas perguntas no dia 3 de abril, mas provavelmente esta entrevista só será publicada quase um mês depois. Como espera que esteja Portugal nessa altura?

Espero que Portugal esteja mais protegido, que tenha percebido que juntos somos muito fortes e que temos capacidade de produzir o que quer que seja dentro das nossas fronteiras. Temos mentes brilhantes e a melhor indústria do mundo, somos um povo solidário que arregaça as mangas para fazer o que é necessário e para isso só é preciso acreditar em nós. Espero mesmo que este vírus passe rápido para marcar um “mega” encontro Maker em que possamos dar gargalhadas e falar sobre esta grande mobilização. E espero conseguir agradecer a todos os Makers que acreditaram e que me apoiaram em toda as causas!

 

 

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