Opinião

O Natal não se compra

Sofia Franco é mãe, esposa, cronista e tantas outras coisas que os dias exigem. Fundou o blogue “Not Just 4 Mums” e é com ele que ocupa grande parte do seu tempo. Foi com a maternidade – tem três filhas e a quarta está a caminho! – que descobriu as novas emoções que hoje em dia a fazem procurar e dar a conhecer incessantemente exemplos femininos de irreverência e persistência.

Joana consegue ver da janela a agitação nas ruas frias, as pessoas passam por ela sem reparar que ali está, que as observa em cada gesto e em cada olhar.

É véspera de Natal, as lojas que ainda estão abertas têm filas de pessoas que compram os últimos presentes. É sempre assim, todos os anos desde que se lembra de ser gente que daquela janela consegue ver a pressa daquela outra gente. 

Em casa tem o pinheiro a piscar, meio tosco com bolas e enfeites, não é uma árvore grande ou bonita como a da sua amiga Sara na casa ao lado. Há cheiro a filhoses, a fatias paridas e coscorões a sair do óleo. O fogão tem lenha suficiente para aquecer a noite e daqui a pouco chega a família que se junta à mesa para o bacalhau com couves. Não há pressa nem correria e nessa noite não há fome. As prendas são só lembranças, como diz a mãe, e Joana sabe que da avó recebe as meias e da mãe, talvez se o ano tiver corrido bem e a despesa não tiver sido muita, vai receber um relógio da papelaria da esquina, um caderno, ou talvez uns marcadores para pintar. Está vestida com a roupa nova da feira que no lugarejo onde vive se faz à quinta. 

Joana consegue ver da janela os seus sonhos de Natal, tudo o que imagina para este dia. Não se lembra de alguma vez ter acreditado no Pai Natal, a realidade sempre foi dura e a explicação para os poucos presentes no pé da árvore não era compatível com a história do pai natal que contam aos meninos que recebem tantas prendas que no dia seguinte já não sabem o que lhes fazer.

Mesmo assim, Joana queria o mesmo que os outros, o muito que só ouvia falar. Cresceu com a cabeça colada naquela janela a ver a vida passar, a imaginar-se a si crescida que, quando o tempo passou, não se viu a ela a fritar coscorões, a amassar filhoses ou a cozer bacalhau, como fazia a sua mãe, não se viu a correr apressada para a loja, antes que feche, e já não consiga o presente que lhe falta da lista. Em casa tem a lareira acesa para aquecer a alma e os miúdos correm descalços no chão de tijoleira fina, não lhes cheira a Natal porque não cresceram como a mãe de cabeça colada no vidro frio, não lhes sabe a Natal porque filhoses e fatias paridas não são doces que apreciem. Os seus doces vêm enrolados em papel de embrulho e fita colorida, com laços feitos à pressa no balcão de embrulhar. Embrulha-se assim também o Natal, para se desembrulhar logo à noite e deitar fora as caixas de cartão que sobram no dia a seguir. E assim, sem querer, Joana tem saudades das tardes e noites de Natais menos instantâneos, que não vêm em embalagens descartáveis nem se compram no supermercado. Esses Natais meio toscos, mas sem pressa e de mesa posta até ao dia de Reis, com tempo para ser Natal. 

 

Sofia Franco
www.notjust4mums.wordpress.com
Facebook e Instagram: @notjust4mums

 

 

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