ENTREVISTA AO CARTOONISTA, DESENHISTA E HUMORISTA, ADÃO SILVA
Reconhecido pelo seu enorme talento enquanto cartoonista, Adão Silva tem um historial profissional de excelência, com provas dadas também no desenho, na ilustração e caricaturas. A revista Minha esteve à conversa com o artista e nesta entrevista fique a conhecer o percurso deste profissional e o seu trabalho repleto de humor.
Como e quando começou o teu contacto com a arte?
Começou muito cedo e naturalmente, por volta dos 3 anos já se começavam a ver papéis rabiscados pela casa. Culpa dos desenhos animados da tv e os jornais que o meu pai trazia para casa. Lembro de fazer recortes que guardava em capas de argolas com bandas desenhadas, ilustrações, caricaturas, cartoons (estávamos no pós 25 de Abril). Tudo que fosse desenho. Até cartazes da Semana Santa e São João de Braga (do Mestre José Veiga, não sabia na altura) o meu pai conseguia arranjar para me dar. A minha irmã mais velha e o meu pai também desenhavam, mas como hobby, a minha irmã tinha jeito para a pintura e trabalhos manuais, o meu pai era um “urban sketcher” (o termo atual): para todo o lado onde ia levava cadernos, escrevia bastante e fazia registos de igrejas, monumentos… claro que tinha que influenciar. Os jornais nos finais de 70 e início de 80 davam grande foco à banda desenhada através de suplementos infanto-juvenis e páginas dominicais em que publicavam pranchas de bandas desenhadas franco-belga clássicos. Absorvia tudo e era muito curioso. Como nunca fui bom a desporto, virava-me para o desenho, era a minha praia…
«Quando era pequeno devorava as séries de tv e tentava-as reproduzir para o papel.»
Quando aprendeste a desenhar e a caricaturar?
Foi nessa altura. Recordo que nos aniversários e Natal recebia além de brinquedos, material e livros de desenho e álbuns de banda desenhada (Astérix, Tintin, Lucky Luke, etc…) Devorava as séries de tv – só havia um canal e a preto e branco – e tentava-as reproduzir, era na altura o Vicky, o Marco, o Tom Sawyer, o Dartacão, os programas do Vasco Granja, etc. Eram vários campos: animação, ilustração, banda desenhada, caricaturas. Também era escuteiro e é um extra para exercitares a imaginação e os jogos e o contacto com a natureza, cheguei a fazer relatórios de atividades em banda desenhada, “transformando” os meus irmãos escutas em “bonecos”. Foi o primeiro “exercício de caricatura e exagero” que me recordo, um com orelhas grandes, outro muito alto, etc. Na adolescência, devorava quadradinhos, desde Disney, Turma da Mónica, Bolinha e Luluzinha, Recruta Zero, à Marvel e DC. E comecei a publicar BD no Comércio do Porto – suplemento “Cantinho do Nicolau” e em concursos de desenho do “Chico Omolete” do Correio da Manhã. Também publiquei diariamente uma tira temporária no Correio do Minho. O cartoon nessa altura ainda era destinado aos cantos dos cadernos, com caricaturas e situações de professores e colegas…. Só quando ingressei no exército pelos 19 anos é que as caricaturas tiveram muito mais peso. Fui socorrista e logo nas formações teóricas voltou o hábito de rabiscar num canto do caderno as caricaturas dos militares. Era a minha forma de escape e de me abstrair, como há quem use o tabaco… Mas em pouco tempo espalhou-se pelos quarteis onde passei… prática de caricaturas por lá nunca faltou!
Quem são as tuas referências?
Os meus pais e irmãs por terem descoberto muito cedo as minhas apetências e incentivado sempre para continuar. Em arte, Uderzo, Morris e Hergé, moldaram a minha infância e adolescência. Tive a sorte de conhecer Achdé que continuou com a personagem Lucky Luke. Os animadores da Disney James Baxter, Andreas Deja, Glen Keane, fantásticos desenhadores. Cheguei graças a eles a sonhar trabalhar em animação. O cartoonista Zé Manel já falecido, que me deu os primeiros conselhos, foi através dele que conheci o Osvaldo de Sousa, que organizava os festivais de Humor de Oeiras e do primeiro Porto- Cartoon. Tinhamos um encontro anual de caricaturistas em Espinho e era sempre um fim de semana animado: Artur, Onofre Varela, Zé Oliveira, José Ferreira (também já partiu), Gogue, Omar, todos caricaturistas, a ser referências. No campo internacional, Tom Rich- mond e Mort Drucker, da extinta revista MAD. J. Scott Campbell, Jim Lee, Joe Madureira e Barbucci nos comics atuais. Cada um com o seu estilo diferente.
«Os meus pais e irmãs tiveram um papel fundamental porque descobriram muito cedo as minhas apetências e incentivaram-me sempre para continuar»
Como defines o teu trabalho?
Uma forma de dar mais cor e alegria a acontecimentos reais, abordando notícias e acontecimentos de forma mais leve e livre usando o humor. Ironia contra o cinzentismo e o bota-abaixo só porque sim. E as pessoas identificam-se.
Fala-nos um pouco do teu trajeto profissional?
Fui para o serviço militar onde acabei por ficar 10 anos, para alguma surpresa da minha família, com o objetivo de terminar o 12º ano e concorrer para as Belas Artes do Porto, no curso de design de comunicação. Já se tornava complicado aos meus pais, num curso considerado caro (e não ser em Braga)… ingressei nas Belas Artes, não havia horário pós laboral num curso eminentemente prático. As teóricas ia fazendo por exame sem nunca as frequentar. Demorou muito mais que cinco anos, mas já não daria essa despesa aos meus pais. Nunca parei de desenhar e participar nos salões de Humor de Oeiras e Vila Real e no Salão de Banda Desenhada do Porto onde publiquei o no 13 de uma coletânea com autores portugueses, Quadradinho, para ir marcando presença e currículo, e frequentava as lojas de comics do Porto. Também fazia, nas férias e fins de tarde, caricaturas para algumas faculdades do Porto e também para a Católica em Braga. Era um extra. Conheci mais tarde o produtor da Abre-te Césamo Audiovisuais que me desafiou a fazer storyboards e design de personagens para séries que produziam para a tv (via marionete), produziam na altura “A Bruxa e o ET” e desenvolvi todas as personagens de uma nova série “Draculinha o Vampirinho”. Depois a empresa foi transferida para o Brasil e estreou na SBT. Com o trabalho produzido aí enviei o portfolio para a Porto Editora, que me contactaram dois dias depois para começar a colaborar. Bem a tempo pois quando me ligaram foi precisamente o dia que terminei a vida militar. Criei de seguida a minha empresa de prestação de serviços e colaborei assim em centenas de livros para a editora, quer da pré primária, quer escolares. Pelo meio, ilustrei livros especificamente para os mercados Palop – Angola, Moçambique, Cabo Verde e Timor Leste.
Como começaste a publicar em Braga?
Como foi a tua passagem para o Diário do Minho? Havia amigos que constantemente me desafiavam, para fazer caricaturas dos políticos locais de Braga, numa altura que havia o “Contra-Informação” na tv. Até aí só trabalhava para a Porto Editora e tentava terminar o curso, mas não fazia nada para Braga (à excepção da criação da imagem da campanha Estrada Com Vida para o Governo Ci- vil de Braga). Tinha já a minha página pessoal do facebook onde ia publicando trabalhos e estávamos no ano de 2013, autárquicas à porta. Na minha página ia publicando a caricatura de cada um dos candidatos. Surgiu a ideia de enviar para os jornais, por email. O Rui Graça do Correio do Minho contactou-me e, na véspera do dia de reflexão, vieram publicadas na primeira página. Houve logo frenesim, quem seria o autor das caricaturas, ainda por cima de candidatos locais. Depois o diretor Paulo Monteiro sugeriu a continuação das caricaturas no jornal de pessoas ilustres. Preferi que fossem antes cartoons usando caricaturas, teria assim muito mais espaço de manobra e seria dois em um. Publiquei ininterruptamente, verão a inverno, todos os sábados por 4 anos pro bono, com grande aceitação do público. Aquando das novas instalações em Gualtar, o Sr. Cónego Fernando, sabendo o valor e aceitação que o cartoon já tinha na cidade, fez-me o convite para trabalhar no jornal e gráfica, aproveitando o cartoon para o Diário do Minho, claro. Aceitei e foi toda uma aprendizagem quer no mac (para um usuário do pc) quer no indesign, que não usava, além de toda a rotina numa gráfica e jornal diário. No entanto, tive assim de deixar de colaborar no Correio. Mas antigos desafios chamavam constantemente, como a continuação das caricaturas de finalistas universitários. Não queria ter na consciência que poderia um dia essa tradição já tão antiga terminar por falta de oferta. Não depois de tantos anos a afirmar essa arte. E entrei em acordo com o Diário, que manifestou vontade de continuar os semanais cartoon, 7 diferenças e a nova tira Lobito Zito no suplemento Igreja Viva. E mais uma ou outra colaboração que necessitem.
É possível viver só do cartoon?
Depende sempre do que exijas para viver. Mas só do cartoon neste país não. A não ser que sejas um Vasco Gargalo e trabalhes para imensas publicações semanais nacionais em simultâneo, e mesmo assim… No meu caso tenho as encomendas particulares, as caricaturas dos Livros de Curso e outros trabalhos no campo da ilustração e design. Por vezes as pessoas esquecem que é o nosso trabalho, não um hobbie, e que os artistas também têm despesa com material, eletricidade, telecomunicações, deslocações, etc. Ah, e também comem.
«Não é possível viver só do cartoon em Portugal. A não ser que sejas um Vasco Gargalo e trabalhes para imensas publicações semanais nacionais em simultâneo»
Onde vais buscar inspiração para o teu trabalho?
A praticamente toda a tua bagagem e vivência até agora. Ao cinema, à literatura, à cultura pop, à vida real, às conversas de café entre amigos. Até aos telejornais, obviamente. Tenho como ponto de partida a realidade, a notícia de determinado acontecimento. A sátira, o exagero e a criatividade faz o resto, o cartoon não é um documentário. Ando sempre que posso com papéis e caneta no bolso e, mesmo em casa, tenho cadernos de notas na mesinha de cabeceira, pois nunca sabes quando te dá um “eureka”. Já tive ideias que me apareceram a meio da noite. Às vezes uma frase dita por algum político, por exemplo, dá origem a um cartoon, ou pelo menos a parte dele.
«Ando sempre que posso com papéis e caneta no bolso e, mesmo em casa, tenho cadernos de notas na mesinha de cabeceira, pois nunca sabes quando te dá um “eureka”»
É difícil fazer humor num registo de cartoon num meio mais local, como é Braga?
É sempre muito mais fácil satirizares quem está longe e não conheces, sem dúvida. A maioria dos visados tem poder de encaixe. Até já houve quem pedisse para sair em algum. Braga é efervescente de acontecimentos e, por vezes, torna-se é difícil escolher um tema semanal, pois há sempre várias coisas a acontecer ao mesmo tempo por aqui. Em tempos de pandemia naturalmente abordei assuntos mais quer pelo conteúdo, quer pelo traço, quer por achar mais ou menos parecidas as caricaturas com o original. E eles não.
«Tento sempre não me repetir nas ideias e nas pessoas. E no fundo quem me conhece sabe que os respeito a todos. Tenho amigos em todos os quadrantes políticos»
Nem sempre as pessoas percebem ou identificam quem estás a “satirizar”?
Nem sempre. Vão-se apercebendo quando aliam o texto, ou recordam algo que se tenha passado nessa semana e acabam por identificar. É muito mais fácil identificar por cá um Ricardo Rio que um Llorenç Barber (compositor do concerto de sinos do 25 de Abril de 2019) ou um David Basulto (atribuiu o prémio ArchDaily aos Cerejeira Fontes Arquitetos pela Capela Imaculada) pois provavelmente nunca os viram ou ouviram falar neles. Mas faço questão que fique o registo para a posteridade. Através de partilhas chegam aos próprios. Alguns agradecem. Não é todos os dias que se figura num cartoon, para mais noutro país! Também como uso muitas referências do cinema e toda a cultura pop, alguns não estarão tão familiarizados: colocar a ministra da saúde de mão dada com a diretora da DGS vestidas de igual num corredor com papel de parede decorado com padrão covid nem todos remeteram para o filme de terror “The Shining”… mas são easter eggs que gosto de introduzir. Se um dia houver um livro com os cartoons todos serão revelados.
Como é que lidas com essas situações? O não reconhecer? Não levo a mal, é normal para quem não está na esfera de conhecimento dessa pessoa. Por vezes posto a notícia onde me baseei para dar algumas pistas sobre quem é. Mas claro, um cartoon explicado à exaustão ou com legenda em cima de cada caricaturado com o nome acabava sempre por perder alguma da piada. Prefiro que cada um descubra as “pistas” e faça a sua interpretação pessoal.
“Rir dos outros para rir de si mesmo” ou “Rir de si mesmo para rir dos outros”. Em qual das máximas te revês?
“Rir de mim mesmo para rir dos outros”, absolutamente. Não tenho problemas nesse sentido… já publiquei cartoons onde me auto satirizei… como no caso do galardão a Nossa Terra – Não no sentido de auto-promoção, mas mesmo para brincar com a situação, envolvendo o diretor do DM à espera do trabalho enquanto eu brincava entretido com o galardão em vez de trabalhar (risos).
Qual foi o cartoon que mais gostaste de fazer?
Talvez pela simbologia, as Bodas de Ouro Sacerdotais de D. Jorge Ortiga; a homenagem às vítimas do Charlie Hebdo; o da Fábrica da Confiança; o plantel do Braga ainda no Correio do Minho, que originou um poster bastante procurado numa edição do jornal e canecas estampadas para os atletas… pena não terem criado merchandising com caricaturas dos atletas por parte do clube. Tinham ali um ponto de partida e os colecionadores agradeciam.
Já te aconteceu ter um sentimento de culpa relativamente a algum cartoon?
Nem por isso. Só aconteceria se alguém se suicidasse por causa de algum (risos). Ao fazê-los pode passar pela mente qual será a reação dessa pessoa – “Levará para a brincadeira? Levará a mal?”… mas não me foco muito nisso, ou nunca sairia nenhum – temos “licença para satirizar” de forma responsável. Tento sempre não me repetir nas ideias e nas pessoas. E no fundo quem me conhece sabe que os respeito a todos. Tenho amigos em todos os quadrantes políticos.
Já sofreste represálias?
Na tropa, o General da RMN (Região Militar Norte) levantou um processo por causa de um jornal de caserna, em que se satirizava alguns militares e situações. O caso só ganhou relevo porque também criticava as militares. Não resultou em condenação mas deu-te algum calo para situações desse tipo. Nas redes, de vez em quando, há críticas principalmente quando envolve o Braga, mas se parte de um perfil falso ou sem foto ignoro. Cinzentões vão sempre haver e ver o sucesso dos outros causa-lhes sofrimento, pelo que devemos ter alguma pena e tolerância. Também há os admiradores sazonais, que te acham “o maior” quando satirizas alguém que não gostam, mas já não são tão fãs quando criticas também o lado deles. O caso mais espantoso partiu do diretor de um jornal de âmbito nacional, que não percebeu o sentido de um cartoon e pelo facto de se ver caricaturado nele pressupôs outro sentido. Exigiu um pedido de desculpa no jornal. Estranho de quem sempre defende a liberdade de imprensa e de expressão. Só acedi por o cartoon ser o Cartoon DM, se fosse publicado apenas no meu perfil, não cederia. Aliás, na segunda seguinte, após publicação desse “pedido de desculpa” informaram-no que o cartoon mantinha-se na minha página e exigiu que o apagasse. Não o fiz, não fazia parte do acordo inicial.
Que temas gostas de abordar?
Assuntos de política, sociais, a condição humana… desporto, ocasionalmente porque a tendência é focar mais na roupa suja de bastidores que no jogo em si… como caricaturar um jogo? Cheguei a fazer caricaturas dos vencedores olímpicos deste ano, por exemplo. Era inevitável. Mas de longe a política é pródiga em acontecimentos caricatos.
Tens alguns tabus?
Não. Mas teria algum cuidado extra se tivesse de abordar eventos trágicos. De resto, se justificar o tema, sem problemas.
O teu trabalho já foi censurado?
Nos dois jornais raramente o fui, já retirei um elemento ou outro do cartoon pois poderia ser mal interpretado. Em oito anos acaba por acontecer… compreendi, claro, pois os jornais são sempre alvos mais apetecidos que o autor… Por vezes essas ideias são recicladas, para mais tarde readaptar com outras personagens e outras situações que façam mais sentido. Nada fica perdido definitivamente. Tenho sempre liberdade de escolher o tema, sabem que é sempre atual, mas também em dúvida gosto de consultar o diretor Damião, que mais que ninguém saberá se vai ao encontro da linha editorial do jornal.
«A política é sempre pródiga em acontecimentos caricatos»
Como foi a entrada do computador na tua vida profissional? Foi benéfica para aquilo que fazes?
Do mais benéfico possível! Inicialmente os meus cartoons eram pintados à mão em lápis Caran D’Ache aguareláveis. Não deixei o papel e as canetas, apesar de ter uma Wacom Cintiq. Gosto de desenhar diretamente na folha, apesar de gastar mais material e ter mais trabalho, mas, não seria a mesma coisa. Uso o computador para scanear, formatar e colorir. Se repararem bem, aliás, os meus cartoons têm linha colorida, técnica que vem da animação 2D da Disney, só possível no computador. Foi crucial quando comecei a minha colaboração na Porto Editora, dada a quantidade de alterações e substituições de imagens, os textos poderiam mudar por imposição de quem aprovava os manuais e programas no Ministério da Educação. Seria difícil ou muito mais trabalhoso se tivesse que mudar uma cor ou personagens de uma ilustração a lápis Caran D’Ache, por exemplo. Teria de a refazer toda de novo…
O humor tem uma linguagem muito forte. Na tua opinião, que papel deve ter?
O humor pode e deve ser usado tanto como provocação como de forma didática. Ninguém duvida que através do humor a mensagem passa e é recebida muito mais depressa, também no caso do cartoon. Um longo texto pode ser abreviado numa imagem, servir de complemento a um artigo. E também pode servir para homenagear alguém, in me- moriam, sem chocar. É, de facto, uma linguagem muito abrangente.
«O humor pode e deve ser usado tanto como provocação como de forma didática. Tem que haver limite, ou regra, até para o humor. Não pode valer tudo…»
Há um limite para o humor?
Tem que haver limite, ou regra, até para o humor, não pode valer tudo… já houve quem dissesse “se eu tivesse o teu jeito fazia isto e aquilo” há quem use o humor para achincalhar e perseguir, e não pelo humor em si. Não me identifico. Depende claro dos valores do próprio humorista. Uso o cartoon para expor algumas fragilidades sociais, Ridendo Castigat Mores (corrige os costumes sorrindo), e não como “arma bélica” contra tudo e todos ou humilhar… cada qual é livre de fazer a sua interpretação, o que também é interessante. Já li nas redes interpretações e outras leituras brilhantes.
Achas que o teu estado de espírito influencia o cartoon?
Sou normalmente bem disposto e otimista, mas dias maus todos temos. Tive um episódio marcante… há 16 anos estava num verão a fazer caricaturas de finalistas da Faculdade de Engenharia do Porto e recebi um telefonema. Acabava de falecer a minha irmã. Mas ainda tinha mais 5 alunos por fazer, e vieram propositadamente ao Porto. Ainda perguntei sem explicar se viriam ao Porto mais vezes, ao que responderam negativamente. Guardei a situação para mim e ainda fiz essas caricaturas, que supostamente seriam engraçadas. Foi difícil, mas tinha essa missão a cumprir. Também já nada podias fazer, fosses mais cedo ou mais tarde para casa e sabia que os meus estavam juntos e amparados. Nessas situações, tens que te abstrair e separar as coisas por mais que custe. Também já no luto do meu pai, tive de continuar os cartoons e encomedas. A vida continua por mais que nos custe e eles quereriam que assim fosse.
Tens cartoons guardados na gaveta, que nunca foram revelados? Tenho alguns inacabados. O cartoon vive muito do imediatismo e atualidade. Há temas que desatualizam num ápice a não ser que sejam generalistas. Ou publicas logo ou desatualiza ou até outro cartoonista tem exatamente a mesma ideia, no caso de temas nacionais, e não vais repeti-la… Talvez um dia os termine e vejam a luz do dia, numa outra futura exposição que aborde esboços e metodologia de trabalho, por exemplo.
Tens noção do alcance dos teus trabalhos? Nem sempre! Sou frequentemente surpreendido. Há as sucessivas partilhas nas redes sociais que alcançam mais pessoas do que pensamos. Na versão papel, há quem recorte do jornal e coleccione, tal como eu fazia em miúdo. Nunca pensei alguma vez ser galardoado com o troféu A Nossa Terra na categoria Artes e Cultura, que até cheguei a satirizar a cerimónia em anos anteriores, foi tão inesperado. Já recebi mensagens de pessoas que diziam divertir-se com os cartoons no confinamento, ou enquanto internadas no hospital ou de convalescença. Recentemente no Braga Brick deste ano uma senhora de idade ficou imenso tempo na longa fila para ter uma caricatura minha pois o marido já falecido era admirador do meu trabalho… são situações marcantes e inesperadas que só vais sabendo quando te relatam. Houve também muita adesão à exposição “Que Mundo Este!” patente na Torre Medieval do Museu Pio XII. É irreal e tocante ao mesmo tempo a quantidade de pessoas que apreciam o teu trabalho! A elas, um muito obrigado! Se a saúde me permitir, irei continuar…