Chama-se Ana Garcia Martins e é conhecida como “A Pipoca Mais Doce”. Nas últimas semanas andou por todo o país a fazer rir os portugueses com o seu mais recente projeto, “Agora deu-me para isto”, um espetáculo de stand-up comedy. No fim da tour anunciou que parte da bilheteira iria reverter para causas solidárias. Com a revista Minha falou sobre humor, censura, família e bondade.
Licenciou-se em Ciências da Comunicação e foi jornalista durante alguns anos. Nunca pensou regressar ao jornalismo? É uma profissão “condenada” ou é possível reinventá-la?
Fui jornalista durante cerca de dez anos e acabei por entregar a Carteira de Jornalista para poder dedicar-me ao blog a 100%. Fui para jornalismo porque, essencialmente, gostava de escrever e isso é algo que posso fazer nas minhas plataformas. Olho para o meu blogue ou para o meu Instagram como uma espécie de revista em que escolho os conteúdos que quero abordar e sobre os quais me apetece escrever. Não é assim tão diferente daquilo que eu fazia, por exemplo, na revista Time Out. Mas antes escrevia para o papel e agora para o online e para um projeto meu. É um sinal da evolução dos tempos.
Agora deu-lhe para isto: dedica-se ao stand-up. Fica mesmo com um “camadão de nervos” quando sobe a palco ou a coisa dá-se tranquilamente?
Fico, sofro muito. Acho que não conheço nenhum stand–up comedian que diga que adora atuar ou que o faz com uma perna às costas. É um processo sofrido. Mas, quando corre bem, também é bastante recompensador. É mais ou menos aquela coisa que as pessoas dizem sobre ter filhos, que dão muito trabalho, mas que depois compensa muito.
Dezoito espectáculos depois, como acha que se saiu? É para repetir?
Sou excessivamente crítica e analítica. Por mais que à minha volta me digam que correu bem, eu acho sempre que é possível fazer mais e melhor. Senti isso em todos os espetáculos, não houve um em que chegasse ao fim e tivesse dito “ena pá, hoje estive mesmo incrível”. Mas pronto, o feedback dos espetadores foi muito bom, por isso vamos acreditar que gostaram mesmo e que, se calhar, até me safo nisto. E sim, é para repetir.
Alguma vez sentiu preconceito por ser uma mulher a fazer humor?
Não sei se a palavra certa é preconceito, talvez resistência. Ainda não há muitas mulheres a fazer stand-up de forma consistente em Portugal, por isso acho que há alguma curiosidade e desconfiança.
Teve outras humoristas a abrir-lhe os espetáculos. Qual foi o objectivo, dar-lhes visibilidade?
Na zona norte foi a Joana e na zona sul a Luana do Bem. Quando comecei a idealizar o espectáculo decidi logo que queria ter mais mulheres a acompanhar-me. Contrariamente ao que se possa pensar, já há bastantes mulheres no humor em Portugal e são ótimas a fazê-lo, por isso achei que fazia sentido partilhar o palco com algumas delas.
Em todos os espetáculos usou saltos altos. Foi uma casualidade ou uma questão de afirmação do estilo “faço o mesmo que qualquer homem, mas em bonito e de saltos”?
Foi propositado. Sempre que fazia stand-up em bares ia de calças de ganga, t-shirt e ténis, talvez por ser um meio mais masculino e eu sentir necessidade de me integrar. Para a minha tour achei que devia quebrar essa barreira. Gosto de vestidos, de saltos altos, de maquilhagem, e acho que isso não influencia em nada o tipo de humor que faço. E acho giro a ideia de uma personagem compostinha, de saltos altos, a dizer as maiores barbaridades.
Há quem lhe aponte o dedo e seja capaz de dizer que só consegue estar ausente de casa tanto tempo porque tem ajuda. Quando está longe dos miúdos é uma mãe chata via telemóvel?
Não, nada chata. O meu marido faz tudo tão bem como eu, está perfeitamente a par das rotinas dos miúdos, por isso não é preciso estar a deixar indicações para tudo. Apesar de terem sido muitas datas, de norte a sul do país, nunca fiquei longe de casa mais do que dois ou três dias, por isso foi tranquilo.
É muito cansativo, sobretudo para quem vive da produção de conteúdos humorísticos, ter de estar sempre a praticar auto-censura ou a explicar que é só uma piada, já a pensar no que é que poderá vir a chatear as pessoas. Mas as pessoas chateiam-se com tudo, por isso é um exercício ingrato.
Também há quem diga que não faz nada, que ser blogger é muito fácil. É verdade? Pode explicar-nos um pouco do seu dia a dia?
Já me cansei de estar constantemente a explicar que ser blogger é uma profissão e que dá trabalho. Se me paga as contas, então é uma profissão. E para ser bem feita, então dá trabalho. O meu dia a dia é sempre diferente, mas passa muito por responder a emails, preparar propostas para as marcas com as quais trabalho, produzir conteúdos para as minhas várias plataformas, ir a reuniões. Verdade que não tenho o trabalho típico das nove às cinco, tenho uma maior flexibilidade de horários, mas isso nem sempre é uma coisa boa. Por exemplo, estou a responder a esta entrevista às onze da noite, foi a única hora em que consegui um bocadinho livre.
Às vezes não tem saudades de ser apenas a Ana, sem a “Pipoca” a fazer parte da sua identidade?
Tenho saudades do tempo em que não tinha nenhum tipo de exposição. Digo muitas vezes que se me saísse o Euromilhões, fechava imediatamente todas as minhas contas digitais e sumia do mapa. Ou então não. Qual é a piada de ser rico se depois não podemos esfregar as fotos das nossas férias milionárias na cara de ninguém? Calma, pessoas, não se enervem, estou só a brincar.
Qual é o melhor lado da maternidade? Ser mãe fez de si uma pessoa melhor?
O melhor é vê-los crescer, ultrapassar diversas fases, ver o mundo pelos olhos deles. Acho que recuperamos uma certa inocência perdida. Não sei se a maternidade fez de mim uma pessoa melhor. Fez de mim, sem dúvida, uma pessoa mais paciente e altruísta.
Acha-se boa pessoa?
Acho. Acho mesmo que sim. Tenho inúmeros defeitos (sou altamente impaciente, super pessimista, distante, excessivamente sarcástica), mas acho que tenho um bom fundo, que me preocupo com o que me rodeia, que estou atenta.
Não lhe faltam haters. Já alguém a abordou na rua com comentários maldosos?
Nunca. As pessoas só são altamente corajosas atrás de um ecrã. As pessoas que me abordam são as que gostam de mim e que fazem questão de manifestá-lo.
Ou seja, as pessoas só se comportam de determinada maneira porque estão protegidas por um certo anonimato, certo?
Claro. Há uma enorme sensação de impunidade, as pessoas sentem que podem dizer as maiores atrocidades porque estão no sossego de casa delas. Ao vivo metem o rabinho entre as pernas. E ainda bem, não me apetecia ter de aturar trolls na vida real. Eles que se restrinjam ao online, já é suficientemente mau.
Acredita que as pessoas que parecem ver maldade em tudo estão frustradas com as suas próprias vidas?
Não faço ideia. Ao longo dos anos fui desenvolvendo várias teorias. Já achei que era inveja, frustração, maldade, excesso de tempo livre. Agora acho que é uma soma de tudo isso.
O que pode vir a acontecer à sociedade caso as “brigadas dos bons costumes” se instalem definitivamente? É possível (sobre)viver num mundo sem humor e recheado de censura?
Não sei, mas acho que passamos de um extremo ao outro, fomos do poder dizer tudo ao não poder dizer nada. É muito cansativo, sobretudo para quem vive da produção de conteúdos humorísticos, ter de estar sempre a praticar auto-censura ou a explicar que é só uma piada, já a pensar no que é que poderá vir a chatear as pessoas. Mas as pessoas chateiam-se com tudo, por isso é um exercício ingrato.
Lá está, acho que a minha eventual influência também pode passar por isto, trazer para cima da mesa alguns assuntos que ainda são olhados de lado, falar da minha experiência e tentar “normalizar” as coisas. A primeira vez que falei sobre os meus ataques de pânico foi há uns dez anos e continuo a receber quase diariamente testemunhos de outras pessoas que estão a passar pelo mesmo.
Como se vê daqui a vinte anos? Não tem receio da volatilidade do mundo do espetáculo e redes sociais?
Não faço ideia. Nunca fiz planos a longo prazo… Nem a médio, nem a curto, verdade seja dita. As oportunidades vão surgindo e eu vou fazendo uma triagem do que me parece mais interessante no momento. Quando criei o blogue, há 15 anos, nunca sonhei que pudesse durar tanto, por isso não me admirava se durasse mais uns 15.
Não planeia continuar a escrita de livros infantis?
Foi uma coisa que ficou em stand by, mas gostava muito de retomar.
Continua a escrever sem usar o acordo ortográfico: hábito ou protesto?
As duas coisas. Sou um bocadinho velha do Restelo, levo sempre tempo a adaptar-me, e é difícil mudar uma coisa que me está tão enraizada. Além de que há coisas que me parecem só ridículas.
Já esteve envolvida em várias iniciativas solidárias. Esta vertente mais social devia ser uma “obrigação” de bloggers e “influenciadores”?
Se temos uma plataforma que chega a tanta gente, não devemos usá-la só para mostrar os últimos trapinhos que compramos na Zara. O termo “influenciador” tem uma carga muito negativa, demasiado associada ao apelo ao consumismo. Prefiro que a minha influência seja mais abrangente e focada em coisas mais úteis. Desde relembrar os meus seguidores da importância de votarem a tentar envolvê-los em algumas causas sociais e solidárias.
Admitiu publicamente a sua ansiedade. É importante falar destas coisas?
Lá está, acho que a minha eventual influência também pode passar por isto, trazer para cima da mesa alguns assuntos que ainda são olhados de lado, falar da minha experiência e tentar “normalizar” as coisas. A primeira vez que falei sobre os meus ataques de pânico foi há uns dez anos e continuo a receber quase diariamente testemunhos de outras pessoas que estão a passar pelo mesmo.
Uma provocação tendo em conta o espetáculo que vimos: o que dizem os seus olhos?
Dizem que as minhas dioptrias já conheceram melhor dias e que está na altura de uma revisão.