Sugestão de Leitura

O Mercador de Veneza, de William Shakespeare

Escrita entre 1596 e 1598, a comédia trágica O Mercador de Veneza é das mais controversas peças de teatro de Shakespeare. A razão radica no seu tom profundamente antissemita que encontra plena realização numa das personagens mais inesquecíveis que tive o prazer de encontrar, o judeu Shylock. Esta foi a minha segunda incursão no maravilhoso mundo do teatro e que bem que correu.

Em Veneza, no século XVI, o jovem Bassânio pede a ajuda do amigo António, um mercador de enorme sucesso, para conseguir financiar a sua viagem a Belmonte, onde tentará desposar Porcia, uma herdeira rica. António, não dispondo da liquidez necessária, procura o judeu Shylock com quem celebra um contrato de empréstimo absurdo. Na falta do pagamento do mesmo, Shylock pode retirar, do corpo de António, meio quilo de carne. O azar acaba por bater à porta de António que, na data acordada, falha com o cumprimento da sua obrigação. Recordando uma célebre questão dos meus tempos de estudante: Quid Juris?

Em O Mercador de Veneza, Shakespeare demoniza o judeu caracterizando-o como um ser detestável e avarento, mas também lhe dá a possibilidade de apresentar a sua defesa perante uma sociedade intolerante, num monólogo sentido e apaixonante:

“Bicha para peixe; se não alimentar mais nada, alimenta a minha vingança. Prejudica-me, impede-me de embolsar um bom meio milhão, ri-se das minhas perdas, troça dos meus ganhos, escarnece da minha nação, frustra-me negócios, arrefece-me os amigos, inflama-me os inimigos – e que razões tem ele? Sou judeu. Não tem um judeu olhos? Não tem um judeu mãos, órgãos, membros, sentidos, afectos, paixões? Não come a mesma comida, não o ferem as mesmas armas, não está sujeito às mesmas doenças, não o curam os mesmos remédios, não o aquece e o arrefece o mesmo inverno e o mesmo versão do cristão? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos envenenardes, não morremos? E se nos ultrajarmos, não nos devemos vingar? Se somos como vós em tudo o mais, como vós seremos também nisso. Se um judeu ultraja um cristão, que mansidão é a dele? Vingança. Se um cristão ultraja um judeu, que longanimidade deve ser a dele a avaliar pelo exemplo cristão? Ora, vingança! A vilania que me ensinais eu hei-de executá-la, e asseguro-vos que em matéria de execução o discípulo há-de superar o mestre.”

Ato III, Cena I

Na verdade, Shylock acaba por se tornar na grande personagem da peça, oferecendo profundidade e complexidade. À sua volta, os restantes vão gravitando e tentando encontrar a solução para a execução do contrato. Numa primeira linha narrativa, Bassânio parte para Belmonte com o objetivo de desposar Pórcia. Esta aguarda pelo pretendente que vai conseguir resolver a charada deixada pelo seu falecido pai e, com isso, levá-la ao altar. Simultaneamente, Jessica, filha de Shylock, tenta viver o seu amor proibido com Lancelote, cristão. Por último, António, que se endividou para ajudar o amigo Bassânio, tenta cumprir o seu compromisso por Shylock, que está mais interessado em se vingar-se pelo injusto tratamento que tem recebido ao longo dos anos. Tudo culmina num genial julgamento onde o leitor se delicia com a solução dada a toda a querela. O diabo está nos detalhes, mas Shakespeare nada teme. Afinal, conseguiu agradar a crentes e descrentes. A leitura causa algum melindre na medida em que o cristão nos é apresentado como um ser reto e bondoso ao passo que o judeu é vil e ganancioso. A esse respeito, é importante atender à altura em que esta foi escrita. Os judeus haviam sido expulsos de Inglaterra e era frequente a sua representação no teatro com recurso a máscaras hediondas e acusações de perfídia. A moralidade e contextualização da peça era diferente e deve ser atendida. Por outro lado, a forma como Shylock é construído gera empatia, o que me leva a questionar se, de alguma forma, Shakespeare não estava, na verdade, a provar um ponto de vista contrário. O judeu respira e vinga, tal como o cristão. Ainda que, no final, seja este último o percursor público do bem.

Uma peça sublime que, tenho a certeza, não o desiludirá. 

Daniela Guimarães
Blogger de Literatura
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