Vidas

Manteiguiz: com o coração e nas pontas dos pés

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és

No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive. 

Ricardo Reis

Beatriz Figueiredo tem 23 anos, mas o olhar é de quem já viveu muitos mais. O tom com que fala é seguro, quase melódico e só entrecortado por várias gargalhadas espontâneas e sinceras. Licenciada em História e apaixonada por factos, também é uma contadora de estórias nata e uma eterna apaixonada pela dança. Beatriz é o equilíbrio perfeito entre racionalidade e criatividade. As suas opções de vida refletem isso mesmo: está a fazer o Mestrado em História Contemporânea, com uma dissertação sobre Dança no século XX. Ao mesmo tempo fundou e gere a Manteiguiz: vende manteigas de frutos secos, granolas e farinhas. Tudo completamente artesanal, tudo completamente português e tudo completamente… solidário. 

História do coração

Tudo começou por um desafio. A família de Beatriz é muito dada às manualidades: neta de padeiros e cozinheiras “de mão cheia”, sobrinha de artesãs, prima de uma produtora de mel… Começou cedo à volta de tachos e panelas. Gostava de brincar ao ar livre, onde fazia “pães” com terra e água que depois coziam ao sol. Em casa, um tacho com “massinhas” fazia a alegria de Beatriz que, com três anos, já gostava de “ajudar” a mãe a cozinhar (ver fotografia). Com quatro anos fez o seu primeiro bolo de canela. Já fazia manteiga de amendoim em casa há muito tempo quando, em setembro de 2018, uma tia (artesã) lhe lançou o desafio de vender a manteiga numa Feira Medieval.

“A minha tia ia lá vender as suas coisinhas e perguntou-me se não queria ir também. Disse que não, claro! Achei que não ia vender nada, fiquei muito insegura. Dei a desculpa de nem ter frascos. O problema é que uma prima minha, produtora de mel, ouviu a conversa e arranjou-me logo os frasquinhos… Fiquei sem desculpa e tive que ir!”, conta, rindo.

Beatriz vendeu apenas um frasco de manteiga de amendoim durante um fim de semana inteiro. Chegou a casa desanimada, mas a mãe tratou de espantar o desânimo, dizendo-lhe que não podia esperar vender tudo “logo à primeira”. Além disso, Beatriz não podia dar o tempo como perdido: enquanto esperava por clientes durante a Feira, criou uma página de Instagram para o seu produto. Assim nascia a Manteiguiz.

“As pessoas pensam que houve um grande processo de planeamento da marca, mas a verdade é que não. Tinha de aproveitar aquele tempo morto! Nesse dia consegui dez seguidores e achei uma coisa incrível. Talvez valesse a pena continuar!”, explica. A cliente que lhe comprou o primeiro frasco seguiu-a de imediato. Tudo o que se seguiu aconteceu com naturalidade e “aos poucos”. A melhor publicidade da Manteiguiz foi o “passa a palavra”: as pessoas começaram a seguir, a encomendar e a recomendar os produtos. Atualmente a página conta com mais de três mil seguidores e Beatriz já deu várias entrevistas a órgãos de comunicação de todo o país para falar da sua marca. O segredo? Não há.

A minha mãe sempre nos disse para sermos genuínos, para não fingirmos coisas que não somos. As boas pessoas são estrelinhas no meio de um corredor escuro, sempre me disse. É como a borboleta que não vai a um jardim feio e seco… Vai sempre a um bonito e colorido. É nisso que penso quando por vezes também me apetece desistir. Acredito que se fizermos o bem, o bem vem ter connosco

“Não há mesmo segredo nenhum. Qualquer pessoa pode fazer manteiga de amendoim em casa, basta ter um processador. Também não ponho pós de perlimpimpim nos frascos!… Acho que sou simplesmente eu e isso acaba por cativar as pessoas. Às vezes achamos que a simplicidade não cativa, mas não é bem verdade. A Manteiguiz é muito do que eu sou, ponho muito de mim na marca. Só isso. Sempre ouvi dizer que devemos pôr tudo o que somos até no mínimo que fazemos”, diz.

Percebemos o que nos quer dizer – Beatriz prima realmente pela simplicidade – mas também conseguimos perceber alguns dos ingredientes que levam ao sucesso desta marca. Para além de ser muito flexível, atendendo a vários pedidos e sugestões dos clientes, “Bia” ainda os mima a cada encomenda, seja com um bilhete escrito por si, uma mensagem personalizada ou mesmo um abraço em primeira pessoa.

“Sempre que posso, tento entregar em mãos no Porto ou Lisboa. Gosto de conhecer as pessoas e de estar com elas. Gosto de lhes dar um abraço! E, quando isso não é possível, faço questão de escrever um «bilhetinho». Se por alguma razão não o mando, os clientes já estranham! Agora arranjei também uns ímans para as pessoas poderem pôr os bilhetes no frigorífico”, conta, sorridente.

Família do coração 

De braço dado com a flexibilidade de Beatriz está também a sustentabilidade dos produtos. A maioria é cultivada nos terrenos dos já falecidos avós. Sem produtos químicos, sem tratamentos adicionais. E se é verdade que algumas manteigas são enviadas em recipientes de plástico, também é verdade que a fundadora da Manteiguiz pede sempre aos clientes que os reutilizem. É o que “Bia” faz com as cascas dos frutos secos, que têm uma segunda vida como fertilizantes.

“As cascas servem para fertilizar os terrenos dos meus avós. E quando tenho excedente levo-as comigo para Lisboa e dou-as a floristas ou produtores locais que agradecem sempre. Quando tiverem cascas em casa, já sabem, não as deitem fora!”, pede.

A variedade dos produtos da Manteiguiz é imensa. Se pensa que as manteigas só vão bem com pão, desengane-se. Algumas das manteigas são irresistíveis com saladas, queijos, tostas integrais ou uma boa posta. Beatriz já encontrou quem lhe tenha dito que não gostava de uma variedade e tenha mudado de opinião depois de a provar com alimentos sugeridos pela jovem. As manteigas de pistácio com chocolate branco, a de avelã com chocolate, a de amêndoa com canela e a de caju com pimenta rosa parecem ser as preferidas dos clientes. Há quem prefira combinações mais crocantes, com Filipinos ou Oreo, por exemplo. Neste momento há 25 variedades a provar e Beatriz está sempre disposta a aconselhar os clientes tendo em conta os seus gostos.

“A manteiga de amendoim com curcuma fica muito bem com uma omeleta. A manteiga com sementes de abóbora vai muito bem com queijo. A de caju com pimentão doce liga muito bem com uma posta… Não faltam usos para dar e algumas combinações improváveis são mesmo sugeridas pelos próprios clientes que partilham as suas experiências comigo!”, diz, rindo.

Para encomendar ou esclarecer alguma dúvida sobre os produtos da Manteiguiz, basta entrar em contacto com a Beatriz pela página de Instagram ou Facebook. 

A família é o grande suporte de Beatriz, que não se cansa de referir o apoio dos pais e dos irmãos. Uma das coisas que nos revela é que o pai faz anos a 1 de novembro. “Queria muito dedicar-lhe esta entrevista!”, pede-nos. E nós assentimos, perante o que nos diz a seguir. Os pais ajudaram-na a não desistir da Manteiguiz e continuam a ajudar colaborando com as experiências no laboratório – “são as cobaias!” –, a apanhar os frutos secos, a descascá-los e a triturá-los. Mas a maior ajuda é mesmo o apoio que lhe dão diariamente.

“Eu ainda sou muito ingénua em algumas coisas. Há pessoas que às vezes olham para mim como uma «coitadinha», acham que vou levar muito para trás. A minha mãe sempre nos disse para sermos genuínos, para não fingirmos coisas que não somos. As boas pessoas são estrelinhas no meio de um corredor escuro, sempre me disse. É como a borboleta que não vai a um jardim feio e seco… Vai sempre a um bonito e colorido. É nisso que penso quando por vezes também me apetece desistir. Acredito que se fizermos o bem, o bem vem ter connosco”, afirma.

Cozinha do coração

O lado solidário da Manteiguiz veio ao de cima quando Beatriz se deparou no Instagram com uma publicação que pedia ajuda para uma família chegada de Angola. A família encontrava-se com muitas dificuldades e tinha necessidades básicas: comida, vestuário, eletrodomésticos. Beatriz não conseguiu ficar indiferente. Já com milhares de seguidores na altura, decidiu lançar o apelo na sua própria página.

“Só três pessoas é que me ajudaram, mas um dos quartos de minha casa ficou cheio com doações delas. Conseguimos comida, eletrodomésticos, brinquedos, uma quantidade enorme de coisas. Foram dois carros a abarrotar ter com aquela família, tive oportunidade de os conhecer e abraçar… foi incrível! Tive mesmo a sensação de conseguir fazer a diferença. Acho que não podemos deixar de fazer as coisas por achar que não vamos conseguir nada. Vamos sempre fazer alguma coisa, nem que seja ficar na história das pessoas! Mais uma vez a história… é uma vertente tão bonita da vida”, diz, suspirando. 

Algum tempo depois, outra publicação mudava a vida de Beatriz. O Instagram fazia-lhe chegar a história de Carolina Gil, uma jovem bailarina a quem foram diagnosticados vários tumores malignos nos ossos, pulmão e cérebro. Carolina precisava de ajuda financeira para conseguir lidar com as várias despesas médicas. Beatriz contactou-a e disse-lhe que uma só doação seria insuficiente: durante um mês, metade das receitas da Manteiguiz seriam para ajudar a bailarina. O mês já terminou e as vendas continuam a reverter a favor de Carolina. E assim será, por tempo indeterminado. 

“O caminho é duro e difícil, mas não me posso queixar de nada. Ainda outro dia no Porto Canal me diziam que com metade das vendas para fins solidários acabo por não ganhar nada… Eu ganho muito! Se não fossem estas causas, a minha vida social seria uma miséria, por exemplo. Conheci a Carolina, uma lição de vida que absorvo todos os dias, tornei-me melhor pessoa…”, confessa Beatriz.

De uma publicação nasceu a solidariedade e desta uma bela amizade. As duas jovens são agora amigas e Beatriz não se cansa de surpreender Carolina. Há pouco tempo entrou em contacto com uma das suas marcas preferidas que acabou a presentear a bailarina com um cabaz personalizado no Hospital, durante um dos internamentos. Ainda assim, e apesar de toda a bondade e solidariedade, Beatriz não é imune às críticas.

“Já me perguntaram se eu vendia manteiga de amendoim ou se tinha uma banca solidária. Também já me disseram que estava demasiado envolvida na história da Carolina… Bom, a Manteiguiz é minha e vou continuar a fazer o que quero! Eles sabem lá… A Carolina fez com que eu me libertasse ainda mais e acreditasse mais em mim. Fez-me perceber que tenho realmente potencial para alguma coisa. Só tenho a agradecer-lhe e, enquanto puder, vou continuar a fazer isto”, afirma, convicta.

O Instagram fazia-lhe chegar a história de Carolina Gil, uma jovem bailarina a quem foram diagnosticados vários tumores malignos nos ossos, pulmão e cérebro. Carolina precisava de ajuda financeira para conseguir lidar com as várias despesas médicas. Beatriz contactou-a e disse-lhe que uma só doação seria insuficiente: durante um mês, metade das receitas da Manteiguiz seriam para ajudar a bailarina. O mês já terminou e as vendas continuam a reverter a favor de Carolina. E assim será, por tempo indeterminado.

Questionada sobre o futuro, Beatriz sorri. Não gosta de pensar demasiado: diz que é muito ansiosa e por isso gosta de ficar feliz com os “bocadinhos” que vai recebendo. Mas, a sonhar, seria com um espaço em que pudesse dar a conhecer as coisas que cozinha envolvidas com história, dança… e solidariedade. “Não quero nunca deixar a Manteiguiz de lado. Há pessoas a precisar de mim”, conclui.

 

 

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