O meu pai quando se sentava à mesa pedia o pão, o queijo e o vinho, a minha mãe passava-lhe o sal e a seguir servia-lhe a sopa. Cresci a ver a minha mãe servir o meu pai neste gesto repetido feito ritual à mesa. Quando em adolescente me opunha a esta servidão tosca, nunca pensei que fosse sentir saudades da forma como se indignava ele com determinadas “liberdades”.
“No tempo de Salazar…” – começava assim as suas frases quando me queria fazer entender que já tinha ido longe demais nos meus protestos. E se eu protestava! Tinha uma opinião crítica em relação a tudo. Se me pedia o azeite, que estava mesmo à distância de um braço esticado sem esforço, protestava! Se o ouvia refletir ou contestar como o mundo de então estava perdido e como os jovens não tinham respeito por nada, criticava e respondia com veemência, senhora do meu nariz e da minha razão. Achava que estava preso a uma memória, que o tempo de Salazar já era e uma nova era, de pessoas livres e com direitos, tinha deixado para trás um punhado de outras presas a costumes antigos e sem sentido, cabeças sem conteúdo e mente moldada ao regime.
Hoje entendo que a minha liberdade, esta que o meu pai me deu, a que me permitiu e a que me ensinou mesmo com comparações salazaristas e com muitos exemplos ditatoriais em casa, foi e ainda é a mesma que hoje me permite educar as minhas filhas para serem livres, para fugirem à servidão física e à clausura de ideias. Aplaudo a criatividade ao invés da obediência e estimulo a “originalidade” em vez da confortável normalidade. Educo-as para serem livres, com ou sem liberdade, porque ser livre vai muito além de um qualquer regime político. Ser livre é um estado de alma e uma vontade de viver, é a força e a razão, o coração e a emoção num cocktail que se bebe sem palhinha e num trago só. E, se para ser livre é preciso ter liberdade, para que ela seja plena também é preciso querer ser livre. Ter essa coragem.
A coragem de uma criança que não se prende a regras, a mesma que não conhece ainda do mundo o suficiente para se retrair de viver. Por isso, deixo-as correr, experimentar o vento na cara ou molhar os pés no mar em novembro. Deixo-as à sua escala escolherem e experimentarem uma liberdade que lhes permita seguir em frente, sem olharem para trás e sem sentirem medo de perder. Porque muitas vezes a nossa liberdade é feita de muitas derrotas, mas muita vontade de vencer, de poucas vitórias, mas muitas tentativas. E é preciso sentir no corpo e na alma esta liberdade de que vos falo, porque sendo livre não há Estado que nos prenda. E quando eu já for velhinha e esticar a mão para apanhar o sal, numa mesa com pão, queijo, vinho e sopa quente para aquecer, vou lembrar–me da forma como o meu pai começava as frases… Porque se no tempo de Salazar houve uma meia dúzia de homens livres que lutaram por um direito, é meu dever lutar também por uma liberdade mais justa para que nunca falte o pão à mesa, a roupa lavada, a educação e principalmente a dignidade a quem vive num Estado livre. Porque ter liberdade e ser livre não é a mesma coisa. Quero que, acima de tudo, as minhas filhas sejam livres, mas que aprendam que viver em liberdade traz responsabilidade, a tal que o meu pai introduzia quando evocava “outros tempos” e que só agora entendo. A responsabilidade que só quem já passou de não ter nada para ter alguma coisa entende. Essa que dá sabor e sentido à palavra que hoje usamos e abusamos, sem conhecer provações que nos permitam atribuir o valor que palavra merece. Liberdade.
Sofia Franco
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