Opinião

Espírito Empreendedor? Alzira só sabia o que era Amor.

Havia uma vizinha lá na terra que andava sempre muito atarefada. Da chaminé da sua casa velhinha de pedra gasta pelo tempo fumegavam sabores que se alternavam com os dias da semana. Amontoavam-se os potes de marmelada, doce de tomate ou de abóbora, com os bolinhos de canela e as areias embaladas em pacotes de jornal que denunciavam a pressa na venda. Anunciava a sua chegada ao povoado senão com o cheiro doce que invadia, sem vergonha de pedir licença, a janela aberta de qualquer casebre, com a voz esganiçada e a buzina nervosa da motoreta que conduzia. Concorria com o padeiro, o peixeiro e o homem da fruta por horário e lugar na rotina das donas de casa de então. Recebia trocado e com um sorriso largo que não acusava o cansaço nas costas e a artrite nas mãos.

Há quem ache que os seus dias eram doces como o doce que fazia, mas o doce deixava-o nos potes que vendia pela aldeia. A vida, essa que sobrava depois de adoçar as panelas, era difícil e farta em trabalhos, um pote sem nada. Convencera-se ela que uma mulher solteira aos quarenta e com um filho não merecia mais que o trabalho e por isso trabalhava. Não sabia nem notava que trabalhava o dobro, talvez mais que o necessário, porque com o medo de alguma coisa faltar ao petiz que não lhe largava a saia – e, vai na volta, queimava a pontinha do dedo de o espetar na doçaria ainda quente –, trabalhava sem tempo de gastar o  dinheiro que se amontoava no cofre escondido na parede. Trazia a chave ao pescoço enfiada para dentro do vestido e só se lembrava dela quando entre contas lhe sobrava mais do que a conta para a semana. 

A vida deu-lhe o Nuno e ele, com o que a mãe lhe deu, comprou-lhe uma casa de tijolo e o descanso que não teve em nova. E a Alzira ouve-o dizer com lágrimas nos olhos que herdou de si o espírito empreendedor, ela por ela, só se lembra de lhe ter dado Amor.

Não levava vida farta, mas o Nuninho vestia e calçava como qualquer menino com pai. A sopa era rica e de vez em quando permitia-se comprar uma perna do borrego do Sr. Artur, ou porco por altura da matança. As galinhas alimentava-as com milho e farelo e andavam bem-criadas. Não fosse o Nuninho persegui-las à fisgada, e até se podia dizer que tinham uma vida de sossego.  Salvavam-se as bichas porque a pontaria do miúdo era pouca e os gritos da Alzira aterrorizavam qualquer soldado do quartel ali próximo. Habituara-se a vizinha a dormir pouco para não lhe faltarem horas ao dia. Entre tantos afazeres ainda se ocupava de cuidar do miúdo e o entregar à escola, preparava-lhe o pequeno almoço e a merenda para o dia porque a escola era longe e ali não passava camioneta. Quando o deixava finalmente entregue à professora já ela ia com o dia a meio. 

Alzira não era mulher de termos e nos dias de hoje queixa-se do tanto que as mulheres fazem, admira–se com o trabalho fora de casa, com os horários apertados, com a vida apressada que o Nuninho agora feito doutor e a mulher também ela com os estudos todos, levam. Fica com o neto e aproveita com ele a infância que não aproveitou com o filho. Barra-lhe o doce no pão, agora em frasco com boa apresentação e o seu nome no rótulo, que o filho em sua homenagem se formou em engenharia alimentar e usou o dinheiro do cofre para montar a fábrica dos doces biológicos e assim prosperar. 

O doce da Alzira é distribuído até para fora do país, mas a Alzira não é de termos, trabalhava porque sem trabalho não comia e não tinha homem que lhe desse vida fácil. A vida deu-lhe o Nuno e ele, com o que a mãe lhe deu, comprou-lhe uma casa de tijolo e o descanso que não teve em nova. E a Alzira ouve-o dizer com lágrimas nos olhos que herdou de si o espírito empreendedor, ela por ela, só se lembra de lhe ter dado Amor.

 

Sofia Franco
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